domingo, 23 de junho de 2013

A literatura é a “mãe” dos direitos humanos

jornal opção
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A literatura é a “mãe” dos direitos humanos
Lynn Hunt, em “A Invenção dos Direitos Humanos — Uma História”, mostra que os direitos humanos, hoje valores universais, não são um produto da natureza, mas uma construção histórica e social
Renato Dias
Especial para o Jornal Opção
Hábitos simples, como assoar o nariz com um lenço, escutar mú­sica, ler um romance, encomendar um retrato, além da abolição da tortura e da moderação do castigo cruel foram indispensáveis para criar as noções de individualidade e o conceito de direitos humanos. É o que aponta a professora de História Moderna da Europa na U­niversidade da Califórnia (EUA) Lynn Hunt,  em “A Invenção dos Direitos Humanos — Uma História”, Companhia das Letras, 285 páginas, tradução de Rosaura Eichenberg).

Os direitos humanos, hoje valores universais, não são um produto da natureza, mas uma construção histórica e social. A sua produção ocorreu após longo processo histórico. A autora revela que três documentos foram fundamentais para “a invenção” do conceito de direitos humanos: a Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França, em 1789;  e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1948. 

Segundo Lynn Hunt, a igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos ganharam uma expressão po­lítica direta pela primeira vez na Declaração da In­de­pen­dência dos EUA, e na De­claração dos Direitos do Ho­mem e do Cidadão. O termo “direitos do homem”  apareceu em fran­cês pe­­la primeira vez em 1762, em “O Contrato So­cial”, de Jean-Jacques Rous­seau. Antes, Montesquieu, em “Espírito da Leis” (1748), havia atacado a tortura. 

A leitura de romances teria contribuído sobremaneira para a mudança das “mentalidades” em relação às noções de liberdade, individualidade, ao apresentar a ideia de que as pessoas são semelhantes. Lynn Hunt informa que a leitura de romances criava o que define como “senso de igualdade e empatia por meio do envolvimento apaixonado com a narrativa”. 

Ao ler, os leitores sentiriam empatia além das fronteiras sociais tradicionais entre nobres e plebeus, senhores e criados, homens e mulheres, adultos e crianças. “Em consequência, passavam a ver os outros como seus semelhantes.” Um gênero que disseminou-se à época era o romance epistolar, que cresceu entre as décadas de 1760 e 1780. Entre eles, “Júlia”, de Rousseau, e “Pâ­mela , de Ri­chardson. 

A autora analisa que os romances apresentavam pessoas comuns como personagens centrais, enfrentando  os problemas cotidianos do amor e do casamento e construindo a sua carreira no mundo. “O meu interesse  é pelo seus efeitos psicológicos  e pelo modo com o ele se liga ao surgimento dos direitos humanos.” O romance de cartas podia produzir  efeitos psicológicos, já que sua narrativa  desnudava o “eu interior”. 

O feitiço mágico lançado pelo romance mostrou ter efeitos de longo alcance. Richardson e Rousseau  estavam efetivamente atraindo os leitores para a vida cotidiana como uma espécie de experiência religiosa substituta. Os leitores aprendiam a apreciar a intensidade emocional do comum e a capacidade de pessoas como eles de criar por sua própria conta um mundo moral. Os direitos humanos cresceram no canteiro semeado por esses sentimentos. 

Lynn Hunt afirma que os direitos humanos só puderam florescer quando as pessoas aprenderam a pensar nos ou­tros como seus iguais, como seus semelhantes. “Aprenderam essa igualdade, ao menos em parte, experimentando a  identificação com personagens comuns que pareciam dramaticamente presentes e familiares, mesmo que em última instância fictícios.” Os romances refletiam um preocupação cultural com a autonomia.

 “Quando falavam de liberdade, queriam dizer autonomia individual, quer fosse a liberdade de expressar opiniões ou de praticar a religião escolhida.” A professora insiste que “ter pensamentos e decisões próprios requeria mudanças psicológicas, políticas e filosóficas”. Os revolucionários franceses (1789-1794) fizeram tudo para expandir as fronteiras da autonomia pessoal.

Em 1762, no mesmo ano em que Rousseau usou o conceito direitos do homem, Voltaire lançou o “Tratado Sobre a Tol­erância por Ocasião da Morte de Jean Calas”. Ele usou, também pela primeira vez, a expressão direito humano. 

“Em 1789, o governo revolucionário francês renunciou a todas as formas de tortura judicial, e em 1792 introduziu a guilhotina, que tinha a intenção de tornar a execução da pena de morte uniforme e tão indolor quanto possível. No final do século 18, a opinião pública parecia exigir o fim da tortura judicial e de muitas indignidades infligidas aos corpos dos condenados”, registra a autora. O corpo se torna sagrado por si próprio.

 “A tortura terminou porque a estrutura tradicional da dor e da pessoa se desmantelou e foi substituída pouco a pouco por uma nova estrutura, na qual os indivíduos eram donos dos seus corpos, tinham direitos relativos à individualidade e à inviolabilidade desses corpos.”

O calvinista holandês Hugo Grotius propôs uma noção de direitos que se aplicava a toda humanidade. Ele igualou os direitos naturais à vida, ao corpo, à liberdade, à honra. Já John Locke, filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, definia os direitos naturais como “vida, liberdade e propriedade”.  Em um contexto revolucionário de resistência à autoridade britânica, os Estados Unidos declararam a independência e anunciaram a era dos direitos. 

Inventor da expressão  “direitos do homem”, Rousseau morreu em 1778 e não viu o “impacto pleno” da Independência americana. A historiadora relata que, entre 1776 e 1783, nove diferentes traduções francesas da Declaração da Independência teriam propiciado aplicações específicas  de doutrinas de direitos e ajudaram a cristalizar a noção de que o governo francês também poderia ser estabelecido sobre novos fundamentos. 

Com a revolução e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), as proteções legais dos direitos individuais  e um novo fundamento para a legitimidade do governo são condensados, na França.  A tortura foi abolida, a lei devia ser a mesma para todos e o acusado devia ser considerado inocente até ser julgado culpado.  Os princípios da humanidade agora modelariam o código penal. Os novos castigos desonrosos não eram extensivos à família.

Protestantes e judeus ganharam direitos. Carrascos e atores, a quem eram negados direitos políticos, tiveram acesso a eles. Primeiro, negros livres, depois os escravos. “O ato de declarar direitos revelou-se apenas o primeiro passo num processo extremamente tenso que continua até os nossos dias”, afirma Lynn Hunt. Para se ter noção, os EUA só aboliram a escravidão em 1865, com a ratificação da 13ª emenda da Constituição. 

A noção de vários tipos de direitos garantidos pela Constituição — os direitos políticos dos trabalhadores, das minorias religiosas e das mulheres — continuou a ganhar terreno nos séculos 19 e 20. O na­cionalismo entrou em cena. O imperialismo idem. Os direitos humanos passaram a depender da autodeterminação nacional. O antissemitismo ampliou seu espaço.  Um novo tipo de opositor aos direitos humanos foi produzido.  

O socialismo e o comunismo se formaram em uma reação explícita às limitações dos direitos individuais. Os vermelhos queriam que as classes baixas, o proletariado, tivessem igualdade social e econômica. Não apenas direitos políticos iguais. Mas, para Karl Marx, a verdadeira emancipação humana requeria a destruição da sociedade capitalista e da propriedade privada. A primeira revolução socialista ocorreu na atrasada Rússia, em outubro de 1917.

Com um saldo de 14 milhões de mortos, a Primeira Guerra Mundial, uma guerra imperialista, acabou em 1918 e no ano seguinte foi criada a Liga das Nações. Ela não conseguiu impedir o surgimento do fascismo e do nazismo. A Segunda Guerra Mundial deixou um saldo de 60 milhões de mortos. Em 1945, surgiu, em São Francisco, a ONU. Ela pôs os direitos humanos na agenda. Em 10 de dezembro de 1948 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos cristalizou 150 anos de lutas pelos direitos. Para Lynn Hunt,  ela é mais o início do processo do que o seu apogeu.  Isso significa que os direitos humanos ainda precisam ser resgatados. Já que a cascata de direitos ainda continua, “embora sempre com um grande conflito sobre como ela deve fluir”.

Renato Dias é escritor, jornalista e sociólogo.

 
Leia um trecho de “A Invenção dos Direitos Humanos — Uma História”

Às vezes grandes textos surgem da reescrita sob pressão. No seu primeiro rascunho da De­claração da Independência, preparado em meados de junho de 1776, Thomas Jefferson escreveu: “Consideramos que estas verdades são sagradas e inegáveis: que todos os homens são criados iguais e independantes [sic], que dessa criação igual derivam direitos inerentes e inalienáveis, entre os quais estão a preservação da vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Em grande parte graças às suas próprias revisões, a frase de Jefferson logo se livrou dos soluços para falar em tons mais claros, mais vibrantes: “Con­sideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”. Com essa única frase, Jefferson transformou um típico documento do século 18 sobre injustiças políticas numa proclamação duradoura dos direitos humanos.

Treze anos mais tarde, Jef­ferson estava em Paris quando os franceses começaram a pensar em redigir uma declaração de seus direitos. Em janeiro de 1789 — vários meses antes da queda da Bastilha —, o marquês de La­fayette, amigo de Jefferson e veterano da Guerra da In­de­pendência americana, delineou uma declaração francesa, muito provavelmente com a ajuda de Jefferson. Quando a Bastilha caiu, em 14 de julho, e a Re­vo­lução Francesa começou para valer, a necessidade de uma de­claração oficial ganhou impulso. Apesar dos melhores esforços de Lafayette, o documento não foi forjado por uma única mão, como Jefferson fizera para o Congresso americano. Em 20 de agosto, a nova Assembleia Na­cional começou a discussão de 24 artigos rascunhados por um comitê desajeitado de quarenta deputados. Depois de seis dias de debate tumultuado e infindáveis emendas, os deputados franceses só tinham aprovado dezessete artigos. Exaustos pela disputa prolongada e precisando tratar de outras questões prementes, os deputados votaram, em 27 de agosto de 1789, por suspender a discussão do rascunho e adotar provisoriamente os artigos já aprovados como a sua De­cla­ração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O documento tão freneticamente ajambrado era espantoso na sua impetuosidade e simplicidade. Sem mencionar nem uma única vez rei, nobreza ou igreja, declarava que “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem” são a fundação de todo e qualquer governo. Atribuía a soberania à nação, e não ao rei, e declarava que todos são iguais perante a lei, abrindo posições para o talento e o mérito e eliminando implicitamente todo o privilégio baseado no nascimento. Mais extraordinária que qualquer garantia particular, entretanto, era a universalidade das afirmações feitas. As referências a “homens”,  “homem”,  “todo ho­mem”, “todos os homens”, “todos os cidadãos”, “cada cidadão”, “sociedade” e “toda sociedade” eclipsavam a única referência ao povo francês.

Como resultado, a publicação da declaração galvanizou imediatamente a opinião pública mundial sobre o tema dos direitos, tanto contra como a favor. Num sermão proferido em Londres em 4 de novembro de 1789, Richard Price, amigo de Benjamin Franklin e crítico frequente do governo inglês, tornou-se lírico a respeito dos novos direitos do homem. “Vivi para ver os direitos dos homens mais bem compreendidos do que nunca, e nações ansiando por liberdade que pareciam ter perdido a ideia do que isso fosse.” Indignado com o entusiasmo ingênuo de Price pelas “abstrações metafísicas” dos franceses, o famoso ensaísta Edmund Burke, membro do Parlamento britânico, rabiscou uma resposta furiosa. O seu panfleto, “Reflexões Sobre a Revolução em França” (1790), foi logo reconhecido como o texto fundador do conservadorismo. “Não somos os convertidos por Rousseau”, trovejou Burke. “Sa­bemos que não fizemos nenhuma descoberta, e pensamos que ne­nhuma descoberta deve ser feita, no tocante à moralidade. [...] Não fomos estripados e amarrados para que pudéssemos ser preenchidos como pássaros empalhados num museu, com farelos, trapos e pedaços miseráveis de papel borrado sobre os direitos do ho­mem.” Price e Burke haviam concordado sobre a Revolução A­mericana: os dois a apoiaram. Mas a Revolução Francesa aumentou bastante o valor da aposta, e as linhas de batalha logo se formaram: era a aurora de uma nova era de liberdade baseada na razão ou o início de uma queda implacável rumo à anarquia e à violência?

Por quase dois séculos, apesar da controvérsia provocada pela Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão encarnou a promessa de direitos humanos universais. Em 1948, quando as Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 1º. dizia: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Em 1789, o artigo 1º. da Declaração dos Di­reitos do Homem e do Cidadão já havia proclamado: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Embora as modificações na linguagem fossem significativas, o eco entre os dois documentos é inequívoco.

As origens dos documentos não nos dizem necessariamente nada de significativo sobre as suas consequências. Importa realmente que o esboço tosco de Jefferson tenha passado por 86 alterações feitas por ele mesmo, pelo Comitê dos Cinco ou pelo Congresso? Jefferson e Adams claramente pen­savam que sim, pois ainda estavam discutindo sobre quem contribuiu com o quê na década de 1820,a última de suas longas e memoráveis vidas. Entretanto, a Declaração da Independência não tinha natureza constitucional. Declarava simplesmente intenções, e passaram-se quinze anos antes que os estados finalmente ratificassem uma “Bill of Rights” muito diferente em 1791. A De­claração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava salvaguardar as liberdades individuais, mas não impediu o surgimento de um governo francês que reprimiu os direitos (conhecido como o Terror), e futuras constituições francesas — houve muitas delas — formularam declarações diferentes ou passaram sem nenhuma declaração.

Ainda mais perturbador é que aqueles que com tanta confiança declaravam no final do século 18 que os direitos são universais vieram a demonstrar que tinham algo muito menos inclusivo em mente. Não ficamos surpresos por eles considerarem que as crianças, os insanos, os prisioneiros ou os estrangeiros eram incapazes ou indignos de plena participação no processo político, pois pensamos da mesma maneira. Mas eles também excluíam aqueles sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns casos as minorias religiosas e, sempre e por toda parte, as mulheres. Em anos recentes, essas limitações a “todos os homens” provocaram muitos comentários, e alguns estudiosos até questionaram se as declarações tinham um verdadeiro significado de emancipação. Os fundadores, os que estruturaram e os que redigiram as declarações têm sido julgados elitistas, racistas e misóginos por sua incapacidade de considerar todos verdadeiramente iguais em direitos.

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