quinta-feira, 29 de maio de 2014

Insegurança e barbárie

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Insegurança e barbárieImprimirE-mail
ESCRITO POR ANNA TROTTA YARYD   
TERÇA, 27 DE MAIO DE 2014


Numa sociedade sob o império econômico e sob o domínio do medo, da insegurança e do egoísmo, o que se observa por entre os escombros de civilidade que ainda restam é um mundo cada vez menos humano e mais bárbaro.

Um jovem, acusado de assalto, é acorrentado nu a um poste com uma trava de bicicleta e tem sua orelha cortada, no Rio de Janeiro. Outro ladrão é acorrentado em Itajaí - Santa Catarina. Em Goiânia, um adolescente é espancado pela população após um furto. Em Teresina - Piauí, um suspeito de assalto é amarrado e tem seu rosto posto em um formigueiro. No interior de Minas Gerais, um rapaz de dezoito anos foi amarrado a um poste e açoitado com fios de energia elétrica pela população.

E a “justiça com as próprias mãos” não para. Nos últimos dois meses, três pessoas inocentes foram assassinadas em “linchamentos coletivos”, acusadas de crimes não comprovados. Alailton Ferreira e Marcelo Pereira da Silva foram mortos em espancamentos coletivos, acusados de estupro. E o caso mais recente é o do Guarujá, onde Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi espancada até a morte pela população, depois de ter sido identificada como a suposta sequestradora de crianças sacrificadas em rituais de “magia negra’ em retrato falado da  página de notícias do Facebook ‘Guarujá Alerta’.

Sem investigações, sem leis, sem direitos, nem humanos. Apenas julgamentos súbitos praticados por indivíduos engolfados em sua razão e dominados pela vontade coletiva irracional de ódio, praticados em verdadeiros rituais de vingança e desumanização, daqueles cuja conduta é socialmente imprópria, aos quais não é dado tempo nem oportunidade para provar ou não a sua inocência.

Assistimos atônitos à onda crescente de barbárie e nos comovemos com tamanha brutalidade, preocupados com o retrocesso civilizatório. Sabemos que eles não são os primeiros e fatalmente não serão as últimas vítimas, nem da violência, nem do descaso nem da ignorância. Mesmo assim, a indignação não vem.

A desigualdade que se perpetua no concreto da vida cotidiana, e que começa e persiste na cabeça de cada um, legitima a ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. No país das indignações seletivas, onde a tortura é consentida, temos por hábito aplaudir soluções arbitrárias contra um caos legitimado.

Afinal, o Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. São todos marginais e também vagabundos. Não podemos mais conviver com a impunidade. No fundo, o Brasil que pede direitos humanos apenas para humanos direitos se sente vingado.

E é muito mais fácil dividir o mundo entre bons e maus, mocinhos e bandidos, e transformar os problemas humanos em problemas dos políticos e dos donos do poder econômico, e não de todos nós.

Assim esquecemos o óbvio em nome da conveniência. E motivados pelo discurso do medo e da insegurança nos permitimos perder a única coisa que nos diferencia no mundo animal – a razão -, para nos tornarmos o pior e mais cruel lobo de nós mesmos.

O problema é que é justamente nesse eixo entre o bem e o mal que giram os preconceitos, as discriminações, os arbítrios, as violências públicas. E é exatamente essa visão maniqueísta que permite que o nosso país continue dividido entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que não têm nenhum direito.

Naturalmente o instinto de preservação da espécie se transmuda em preservação apenas dos humanos bons, geralmente pertencentes ao clico econômico mais qualificado, assemelhados ora por certas características genéticas comuns, ora pela posse de certos signos do pertencimento, para nos tornarmos estranhos entre os iguais.

Mas, se olharmos atentamente, veremos que, na sua essência, o que os linchamentos praticados sugerem é um quadro de mudanças sociais patológicas, na medida em que, nos recantos escuros de um cenário urbano que se expande deteriorado, representam a afirmação de valores negativos, que não se inserem no elenco de concepções positivas a respeito da constituição da humanidade do homem, com respeito aos procedimentos legais, institucionais e racionais de aplicação da justiça, da liberdade, responsabilidade e cidadania.

Nesse contexto também não podemos esquecer nossas raízes históricas, que fazem com que as maiores vítimas de violência no Brasil sejam os negros e pobres. Muito menos podemos fechar os olhos para o cenário de urbanização inconclusa que vivemos, insuficiente, patológica e excludente, de relações sociais essencialmente mediadas por privações.

É preciso urgentemente nos olharmos no espelho com coragem suficiente para encarar a face feia da natureza humana e pararmos de pedir vingança contra o mal por nós mesmos causado.

Porque somente assim poderemos enxergar apenas “nós” na humanidade, e não “nós” como algo contraposto a “eles”.

Em termos jurídicos, a condição de humanidade decorre, em essencial medida, da vida em sociedade, mais especificamente, da teia de comunicações que os seres humanos, nas suas relações sociais, mantêm ou podem manter com outros seres humanos. Assim, não faz qualquer sentido buscar compreender a dignidade da pessoa humana numa imagem de ser humano como ser isolado de tudo o mais, com base numa filosofia que tem a pretensão de interpretar o homem despido de sua sociabilidade, como coisa-bastante-em-si.

A dignidade não reside apenas na pessoa, mas também e principalmente na interação entre pessoas. O respeito, como bem disse Chaplin, no seu excepcional discurso final de “O Grande Ditador”: “O reino de Deus está dentro do homem — não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens”.

Por isso, que possamos seguir em frente, levando conosco uma única certeza: que o futuro da humanidade depende da intensidade da humanidade.

Anna Trotta Yaryd é Promotora de Justiça do Estado de São Paulo, integrante do Movimento do Ministério Público Democrático.

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