domingo, 25 de maio de 2014

Praia do Futuro: a descrição de dilemas

carta maior
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Praia do Futuro: a descrição de dilemas

A angústia não quer ser uma imagem despersonalizada e inerte do sentimento: o filme procura a individualidade do par romântico.


Caio Sarack
divulgação
Até onde pode se chegar com uma abordagem de gênero* sem tratá-lo categoricamente? A indiferença de Karim Aïnouz torna um caso comumente tratado como nicho de luta, de mercado, de moda… numa contingência no mínimo interessante.
 
O filme trata de uma relação homossexual de maneira paralela, enquanto questão de gênero, e dá lugar à descrição da questão do humano. Os problemas, no entanto, que a questão de gênero trazem dão suas conformações particulares a esta descrição.
 
Por exemplo, a intimidade entre Donato (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick) sempre é enclausurada, a sós - mesmo que na multidão das boates berlinenses, mas é uma angústia perene que está em todo o filme; é ela sua força motriz. A relação do casal é só o primeiro dos sintomas desta angústia, não seu centro narrativo. A divisão de “Praia do Futuro” (2014) em capítulos impede formalmente que se tenha a expectativa de um clímax, e que uma revira-volta marque as partes do filme.
 
A narrativa é descritiva, as imagens querem dar ao espectador a realidade das interações, aparentemente cruas, como se a câmera assumisse o foco de um narrador-observador imparcial. Mas essa relação entre descrição e narrador-observador não é prefixado, o diretor os uniu para atingir o efeito.
 
A angústia, ainda assim não é idealizada, não quer ser uma imagem despersonalizada e inerte do sentimento; pelo caminho contrário, o filme procura a individualidade do par romântico. Por exemplo, o choro de Konrad na véspera da volta de Donato para o Brasil, não é o signo de uma solidão, mas uma imagem complexa do que Konrad está sentindo, o mesmo acontece na imagem de Donato saindo do seu expediente de trabalho num aquário em Berlim. A filmagem próxima e o quadro demorado impedem a despersonalização.
 

 
É preciso dizer, todavia: foi a intimidade do casal - ainda que paralela - que possibilitou o horizonte de ação do filme, mas sem determinar o enredo como sendo categoricamente sobre gênero. A saída do Ceará, a divisão de Donato entre os dois países, o irmão mais novo de Donato são questões que tem apelo para além de estar no corpo de um salva-vida homossexual cearense.
 
É dessa abertura para um horizonte que podemos retirar conclusões sobre Praia do Futuro; esse horizonte desvela um trajeto espiral. O que vemos no limite dos capítulos é o limite da próxima curva, o horizonte não é um vértice de uma perspectiva parada. Explico: as mudanças na vida das personagens não são redentoras; descrevem problemas que estão nas mesmas personagens e suas ações, mas que só agora podem ser descritas. O diretor monta, com belas sequências, esse movimento de sumiço e aparição das personagens e seus dilemas. O futuro morre na praia? Não morre, mas some e aparece, foge e retorna.
 
Ayrton (Jesuíta Barbosa), irmão de Donato, assegura o movimento espiral. Mostra como a vida vista de frente - tal como esse espiral - coloca em simultâneo curvas passadas e curvas presentes: Ayrton, mais novo e adorador inconteste de seu irmão no primeiro capítulo, reaparece no último capítulo reafirmando o amor por Donato, mas com as marcas que a fuga do irmão deixou. A transformação e a permanência podem ser vistas nas relações entre as personagens, a curva anterior é o rascunho da curva futura, mas não sua determinação e previsão.
 
Este é o limite do filme e se coloca já na sua intenção: quer descrever o dilema, não quer radicalizá-lo. Li críticas dizendo que a imigração de Donato se dá porque nas terras alemãs ele encontraria espaço para ser o que realmente é; vou na contra-mão desta questão - que com certeza foi animada pelas polêmicas das cenas de sexo gay nas “fugas” de espectadores das salas de cinema -, a imigração é o sumiço para a aparição conseguinte na figura do irmão Ayrton; é uma necessidade para que o filme descreva seu enredo, não uma redenção da personagem, mesmo que em grau menor. Karim Aïnouz nos mostra, mas não disseca ou retira consequências radicais de tais dilemas.
 
Este tom comum em outros filmes no Brasil tem desenhado um projeto de cinema pela descrição. “O Som ao Redor” (Kleber Mendonça Filho, 2012) e “Era uma vez Eu,  Verônica” (Marcelo Gomes, 2012) ou até mesmo do próprio Karim Aïnouz com “O Céu de Suely” (2006),  por exemplo, descrevem autoralmente, mas não radicalizam o movimento fílmico nem narrativo. Mesmo que o tempo do cinema brasileiro pareça justificar esse projeto, a situação nos convida a perguntar se estamos prestes a conhecer uma fórmula de cinema fechada e sistematizada ou a abertura para um aprofundamento radical das narrativas. 

 
* ouvindo sugestões de leitores, achei por bem esclarecer o uso deste termo: gênero, aqui neste texto, supõe uma (in)definição para além do binômio masculino-feminino. O termo "gênero" submetido a esse binômio, me parece, dá margem a exclusão de não só homossexuais, mas de outros tipos de relações.
Créditos da foto: divulgação

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