sábado, 28 de junho de 2014

O general militante

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28/06/2014 - Copyleft

O general militante

O que fazer com o Exército argentino em um país sem probabilidade de conflito, com estratégias regionais de integração e com uma lei de segurança taxativa?


Mario Antonio Santucho
Arquivo

Certa vez, Néstor Kirchner falou para sua ministra da Defesa: “Não quero um exército politizado porque, se eu tenho um exército kirchnerista hoje, amanhã terei um exército antikirchnerista”. A sensatez da razão torna ainda mais chamativa a evolução das Forças Armadas desde o aparecimento do fator Milani. O atual chefe do Estado Maior do Exército declarou em uma entrevista a Hebe Bonafini em dezembro de 2013 que “nos últimos dez anos, consolidou-se um processo de transformação nas Forças Armadas, que começaram a ver um projeto nacional ou um modelo de país no qual as Forças querem se inserir muito profundamente”.

Os notáveis avanços e os surpreendentes retrocessos do oficialismo nessa questão têm apenas uma explicação possível: os motivos da aliança entre o governo e o general Milani são inconfessáveis. Ao cabo de uma década na qual a política assegura ter recuperado o protagonismo graças à influência do consumo reparador, à reposição de soberania estatal e aos discursos midiáticos, as forças conservadoras e invariantes que pululam nos subsolos da espionagem vêm à superfície para influenciar no que está por vir. Há quem diga que é inevitável mexer na fonte dessa racionalidade noturna de espionagem, escutas e caça-fantasmas quando o que se pretende é consolidar a hegemonia de um projeto de poder. Mas à medida que o “dia seguinte” se aproxima, os militares recuperam autonomia e geram as condições para que voltem a ocupar um lugar na cena.

A inteligência sem Estado

Em outubro do ano 2000, Nilda Garré assumia a Secretaria Executiva da Unidade Especial de Investigação criada pelo governo da Aliança com o objetivo de esclarecer o atentado à AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina). Um ano depois, ela renunciou por conta das pressões que se colocaram diante de seus interesses de desfazer a teia que o menemismo havia tecido na Justiça para manipular a investigação do fato. A onda expansiva da queda das Torres Gêmeas havia chegado até Buenos Aires.

Naquela época, a então senadora do Partido Justicialista Cristina Kirchner integrava a Comissão Mista de acompanhamento à Investigação dos atentados à Embaixada de Israel e ao edifício da AMIA, criada em setembro de 1996. A voz de Cristina foi uma das poucas dissidentes naquele corpo legislativo especial orientado a dar respaldo à duvidosa atuação do juiz federal Juan José Galeano e dos promotores – entre os quais, Alberto Nisman. Quando o século vinte agonizava, tanto Cristina como Nilda conheceram a teia de espionagem local, cujos fios se estendiam dos Estados Unidos até Israel. Daquela época data a amizade de ambas com Fernando Pocino, um agente da SIDE (Secretaria de Inteligência do Estado) de origem radical que, durante o kirchnerismo, ganharia relevância. Durante o dezembro mais quente da história argentina, alguns políticos voltaram a bater à porta dos quarteis.
 
A declaração de Estado de Sítio de 19 de novembro de 2001 foi concebida pelo então ministro da Defesa Horacio Jaunarena como o primeiro passo de uma estratégia prevista pelo artigo 32 da Lei de Segurança Interna: “o Presidente da Nação (…) empregará elementos de combate das Forças Armadas para o restabelecimento da situação normal de segurança interna, prévia declaração do estado de sítio”. Um assessor militar encontrou no escritório de Jaunarena, entre seus papéis abandonados logo após o estalido do governo de De La Rúa, um decreto cuidadosamente redigido por meio do qual se criavam os Comandos Operacionais previstos pelo inciso “b” do artigo citado acima: “Será designado um comandante operacional das Forças Armadas e a ele serão subordinadas todas as demais forças de segurança e policiais”. A janela legal rumo à militarização da segurança interna estava a ponto de ser aberta. Mas foi aí que se escutou o “que se vayan todos” (“que todos sumam daqui”).

Por aqueles dias, um desconhecido César Milani era promovido a coronel do Exército.

 
Garra para o processo

Em apenas quatro anos de exposição pública, César Milani é perfilado como o protagonista do terceiro ato relevante do pálido filme militar na democracia. O primeiro ato foi a luta nos anos 80 entre os genocidas em debandada e a estridente aparição dos caras pintadas. O segundo, um aflito general Balza oferece à tribuna uma autocrítica em relação ao passado e neutraliza as hipóteses de politização na década neoliberal. Empaladas pela vergonha de ter sido a pior fábrica do autoritarismo, esvaziadas até a inanição e incapacitadas de imaginar novos horizontes de desenvolvimento, as Forças Armadas chegaram ao século XXI com a língua de fora.

A gestão de Nilda Garré frente ao ministério entre 2005 e 2010 foi um divisor de águar porque tentou remover as bases de sustentação institucionais, atacando ao mesmo tempo o aspecto ideológico (os direitos humanos como valor supremo), a questão cultural (modificação radical da formação militar), e defendendo a presença feminina no interior das Forças. Do ponto de vista político, Garré avançou decididamente sobre a autonomia militar no manejo das Forças.

Para Marcelo Saín, autor do livro Os votos e as botas (2010), a gestão de Garré foi a melhor do período democrático na área da Defesa, “já que teve como horizonte a construção de capacidade de mando ministerial sobre o aparato militar, apropriando-se com êxito da capacidade de condução que historicamente haviam sido delegada aos Estados Maiores de cada Força”. O autor considera que “depois desse processo exitoso, muito pouco valorizado politicamente porque foi mais um projeto ministerial e não governamental, com a chegada de Puricelli tudo volta a ser como antes”. Mas sua preocupação não está no nível dos políticos, mas na expansão da influência de Milani, a quem em seu livro se referia (sem nomeá-lo) como um “assessor de inteligência de pouca importância que opera no entorno de Nilda Garré”.

Saín está convencido de que “o governo, assim como não estava de todo consciente do que significava a agenda de Nilda na Defesa, tampouco conhecia bem a mudança que Milani significava para o interior das Forças Armadas. Não está dentro do Painel de Controle do Governo Nacional e muito menos de um governo em retirada, imerso em uma crise econômica”.

Elevador verde 

César Santos Gerardo del Corazón de Jesús Milani foi promovido a general de Brigada em 2007. Nesse mesmo ano, uma operação exitosa de inteligência é realizada. Enquanto finalizavam os preparativos para a troca de Néstor por Cristina, os funcionários compravam suas fichas e faziam suas apostas. O multifuncional Aníbal Fernández, então ministro do Interior, especulava para assumir a Defesa. Para consegui-lo, conspirava com o titular do Exército, Roberto Bendini, e com o chefe da Inteligência Militar (conhecida como J-2), Osvaldo Montero. Essa foi a versão que o segundo de Montero apresentou à ministra Garré, de maneira reservada. A ação desencadeou a demissão do chefe dos espiões e a promoção de Milani ao comando da J-2. No ano seguinte, Bendini, o general que tirou os quadros, foi aposentado, sem honras.

Toda a liderança militar é construída em dois terrenos distintos. De um lado, está a carreira profissional, que não se rege por parâmetros puramente meritocráticos. Para subir, é preciso assumir determinados estilos, tecer cumplicidades e ser portador de uma certa representatividade corporativa. O tom conservador impregna as condutas desde o mesmíssimo Colégio Militar. Para aqueles que chegam a um plano superior, a bajulação passa a ser o elemento determinante. O vínculo com os atores políticos se constitui no fator-chave.

Milani jurou lealdade ao projeto de Garré e deu a entender que colocava à sua disposição o aparato de Inteligência do Exército. Os primeiros movimentos logo em 2007 foram de sedução. O general depurou todos os agentes envolvidos com a repressão ditatorial e acatou com entusiasmo a modernização do serviço de espionagem. A hierarquização da inteligência militar foi um dos principais itens no redesenho da Forças Armadas imaginado pelo ministério, em função das novas teorias sobre a questão bélica, o que se expressou no crescimento significativo do orçamento dedicado a isso. Também resultou na considerável expansão de sua rede de influência, implantando secionais em quase todas as unidades que o Exército possui no país, por menores que fossem.

2010 foi o ano da reviravolta nessa história. Nos primeiros dias de janeiro, uma peça-chave da equipe de Nilda Garré pediu demissão; o então vice-ministro Germán Montenegro, atual titular da Polícia de Segurança Aeroportuária, saiu do ministério incomodado com o crescimento de Milani nas Forças Armadas. Na imprensa, Montenegro relata uma aliança entre o general espião e outro homem-chave da espionagem nacional, o atual chefe do Departamento de Reunião Interior da Secretaria de Inteligência do Estado, Fernando Pocino. O alcance dessa conexão é e continuará sendo um enigma, mas é possível deduzir sua importância como base de sustentação do projeto de Milani.

Em fevereiro do mesmo ano, a revista Veintitrés publicou “Todos os nomes do Batalhão 601. Um documento histórico: a lista completa de todos os que integraram o organismo de inteligência da ditadura militar entre 1976 e 1983”, uma informação tornada pública por Milani. Três meses depois, o Exército participou de maneira entusiástica das festas do Bicentenário, um impactante e inesperado momento de reunificação pátria. Segundo o pesquisador Máximo Badaró, “a celebração do dia do Exército, o 29 de maio, se transformou na ocasião privilegiada para reescrever seu passado institucional e restaurar a sintonia entre a memória militar e a memória nacional. Para isso, as autoridades militares construíram um relato que omitia seu protagonismo na última ditadura e ressaltava em contrapartida sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social do país, e seus vínculos com a sociedade no contexto democrático atual” (Histórias do exército argentino, 2013).

A partir da morte de Néstor Kirchner em outubro de 2010, e especialmente logo após os enfrentamentos de dezembro no Parque Indo-americano da Cidade de Buenos Aires, em que três pessoas morreram como consequência da repressão das forças policiais, um novo esquema foi montado na área de Segurança. A magnitude alcançada por um novo tipo de conflito social que transformou os territórios provocou o transbordamento das polícias federais e provinciais, que foram penetradas pela potência econômica das redes criminosas, anulando a histórica regulação do delito exercida pelas forças de segurança. Nesse contexto, decidiu-se aprofundar a intervenção da Gendarmaria Nacional e da Prefeitura Naval em tarefas policiais, remanejando milhares de efetivos das fronteiras em direção às cidades. Em 10 de dezembro, criou-se o ministério da Segurança e Nilda Garré foi nomeada para comandar a nova estrutura. Arturo Puricelli, um velho político de Santa Cruz, assumiu como ministro da Defesa. A partir desse momento, os assuntos militares foram decididos diretamente entre César Milani e a presidenta Cristina.

Antes do Natal, Milani é promovido a general de Divisão e passa a controlar a subchefatura do Exército. Pela primeira vez, sua figura é questionada publicamente durante a discussão da sua indicação no Senado, na qual se aponta uma suposta afinidade com os caras pintadas. Mas, em vez de discutir sua situação no presente, aqueles que exigem a demissão do novo homem forte do Exército buscam argumentos unicamente no passado para desautorizá-lo.

Fronteiras da lei

O terrorismo foi a primeira das “novas ameaças” assinaladas pelo Comando Sul do Exército Norte-americano e presentes no país. Segundo as investigações judiciais, ela vem do Irã. Duas décadas depois do narcotráfico, proveniente da Bolívia, do Paraguai e da Colômbia, isso ocupa o centro das obsessões dos serviços secretos.  

De acordo com as informações obtidas por Saín entre oficiais atualmente na ativa, o Exército Argentino vem realizando atividades de patrulha militar no norte desde pelo menos outubro de 2011. Os efetivos escalados para tarefas relacionadas com o combate ao narcotráfico pertencem às Brigadas, V com sede em Salta, XII em Posada e III em Resistencia. As patrulhas estão conformadas pelo pessoal do Exército, que participa com restrição das ações, embora portando armas e sempre sob o comando formal de algum oficial. Tais manobras fazem parte da Operação Fortín II, a maior mobilização operacional das Forças Armadas desde a Guerra das Malvinas.

Fortín II é o dispositivo criado para incluir as Forças Armadas na Operação Escudo Norte, uma iniciativa do ministério de Segurança durante a gestão Garré. As leis de Defesa Nacional e de Segurança Interior promulgadas na democracia impedem expressamente que os militares intervenham em tarefas policiais, embora esta última preveja que “o Ministério da Defesa disporá, em caso de requerimento do Comitê de Crise, do apoio das Forças Armadas nas operações de segurança interior”. Como costuma acontecer em toda trama normativa que incorpora a excepcionalidade como possível, a interpretação se torna um campo elástico sujeito às correlações de forças.

A leitura dos decretos e resoluções despertam uma tensão significativa sobre como as distintas Forças iriam se envolver. A Resolução Ministerial que estabelece o Fortín II foi assinada pelo ministro da Defesa em 12 de julho de 2011 e apenas indica “incrementar e fortalecer as capacidades de vigilância e reconhecimento da matéria aeroespacial”. Uma semana depois, o decreto de criação do Estudo Norte diz que ele “terá por objetivo incrementar a vigilância e o controle do espaço terrestre, fluvial e aéreo da jurisdição nacional nas fronteiras nordeste e noroeste da República Argentina”.

Ambas as operações começaram em 20 de junho e deveriam ser concluídas em 31 de dezembro de 2011. As Forças Armadas contribuiriam com a informação solicitada pelo Sistema Nacional de Vigilância e Controle Aeroespacial (Sinvica), um plano de radarização que data de 2014 com o objetivo de monitorar o tráfego aéreo. O procedimento consiste em detectar “os voos irregulares” e transmitir esse “dado neutro” às forças de segurança para que procedam à eventual detenção. Em 7 de agosto, duas semanas depois de iniciadas formalmente as operações, um helicóptero da Gendarmaria derrubou um pequeno avião Cessna com 70 quilos de maconha em Campo de Gallo, a 200 quilômetros ao norte de Santiago del Estero. O Eurcopter AS350 de Gendarmaria também caiu ao solo logo depois de ser atacado pelo pequeno avião do narco.

Dentro desse contexto operacional, o Exército não tinha o maior protagonismo. Mas começou a pressionar. Até que, em 9 de setembro do mesmo ano, foi assinada uma Resolução Conjunta que prevê “a transferência do Sistema de Defesa Nacional para o Sistema de Segurança Interior todos os dados neutros relacionados a movimentos terrestres que foram oportunamente registrados pelas Forças Armadas no marco do exercício regular de suas funções de vigilância e controle”. Para tais efeitos, seriam empregados “radares táticos de vigilância terrestre (Rasit), de dotação do Exército Argentino, na zona delimitada pela Operação Fortín II”. Conscientes da ambiguidade da ordem, a Resolução Interministerial anexou um Protocolo que confirma a diferença essencial entre o que deve ser considerado um Tráfico Aéreo Irregular e o que se denomina movimento terrestre “irregular”. O primeiro é fácil de determinar, pois todo voo que não foi incorporado à Administração Nacional de Aviação Civil deve ser considerado suspeito, mas como os veículos terrestres circulam livremente, “não se pode qualificar como irregular um movimento terrestre na tela de um radar tático de modo a ser devidamente interceptado e identificado pelas Forças de Segurança”.

Foi assim que o Exército começou a desdobrar suas unidades no território norte do país, com um agravante: diferente do sistema de radar controlado pela Força Aérea, que possui localizações fixas, os Rasit devem ser empregados de maneira móvel e isso pressupõe deslocamentos fora dos quartéis, uma patrulha situada no limite da legalidade. A solução encontrada pelos brigadeiros da Força Aérea no comando da Operação foi permitir os deslocamentos sempre e quando estiverem sob as ordens e a responsabilidade de efetivos da Gendarmaria. O desempenho dos radares foi péssimo, mas a presença militar nos territórios continua e foi incrementada nos últimos meses.

Negócios de arma dura

A grande afinidade do general Milani com o poder político se traduz em prerrogativas e benefícios que permitem construir legitimidade entre seus pares. A Operação Fortín II é um argumento de peso não apenas por sua magnitude estética, mas também pelo que ela implica em termos de orçamento. O Decreto 1091/2011 estabelece que se aplique ao pessoal militar afetado “um regime de diárias equivalente ao homologado para o pessoal da Administração Pública Nacional estabelecido no artigo 45 do Anexo I do Decreto Nº 214 de 2006, com suas sucessivas modificações, assim como suas normas particulares de liquidação”. Isso permite aos soldados e oficiais quase duplicar seus minguados salários, já que todos os gastos de manutenção são cobertos pelo Exército.

No mesmo sentido, adverte-se quanto ao crescimento do número de integrantes da cúpula militar. Segundo dados trazidos pelo historiador Máximo Badaró, no fim da ditadura, o Exército contava com 102 generais para um total de 103 mil efetivos. Mas, já em 1984, essa quantidade havia se reduzido a 39 e, durante os vinte anos que vão de 1990 a 2010, não passaram de 35. Mas essa tendência decrescente foi quebrada e, atualmente, há pelo menos 54 generais para uma dotação que ronda os cinquenta mil membros, uma média de um para cada mil, assim como em 1982. essa propensão à macrocefalia contradiz a intenção de construir um controle unificado das três forças, mas é bem-vista no interior do Exército porque amplia as possibilidades de ascensões, “alargando o fuzil”.

Quanto, em junho de 2013, a presidenta ordenou a troca de todos os chefes militares, a consagração de César Milani foi definitiva. Pela primeira vez na história do Exército argentino, um oficial da área de inteligência assumiu a chefatura da Força, contrariando a tradição que estabelece a artilharia, a infantaria e a cavalaria como os três serviços principais com os quais se maneja uma guerra. Ao mesmo tempo, o general de divisão Luis María Carena, também oriundo da área de inteligência e, portanto, subordinado de Milani, foi colocado à frente do Estado Maior Conjunto, deslocando o brigadeiro general Jorge Chevalier, que estava no posto desde 2003. Outro general do Exército, Luis Cundom, foi designado comandante operacional do EMC. Milani multiplicou sua influência colocando quadros da inteligência militar em postos-chaves.

Um fato aparentemente sem vínculo com essa trama, mas que algumas pessoas ao par das redes de espionagem local apontam como muito relevante, foi a assinatura, no começo de 2013, do Memorándum de Entendimento entre Argentina e Irã sobre os temas relacionados ao ataque à sede da AMIA. Segundo os entendidos, esse giro de 180 graus nas investigações constitui uma afronta aos dirigentes da Secretaria de Inteligência do Estado (ex-SIDE), em especial ao mítico Antonio Stiusso, até então vencedor de todas as disputas internas do organismo, e de fortes vínculos com a CIA e o Mossad. Stiusso, por meio da Direção Nacional de Contrainteligência, tem o monopólio estatal das escutas, tem fortes influências no Poder Judiciário da Nação e se reporta ao Subsecretário Fernando Larcher, o pinguim a quem Néstor pediu para fazer um pacto com os espiões, mas que nunca contou com a confiança de Cristina. No contexto de uma transição para 2015 sem certezas de nenhum tipo, a aliança entre o homem forte da Inteligência Militar e o ressuscitado Fernando Pocino traria um destaque particular para o governo. Um rumor amplamente difundido nos corredores da política portenha (com sucursais em Puerto Madero) assegura que a ex-SIDE de Larcher e Stiusso mandou um informe à presidência em outubro de 2013 com a notícia de quer Sergio Massa não participaria das eleições legislativas – e das quais, no último momento, ele decidiu participar, ganhando do oficialismo com facilidade.

Essas versões não podem ser comprovadas porque pertencem ao universo daquilo que não se pode admitir – lá onde se conformam as bases de sustentação de uma política que continua tendo o traseiro sujo e não admite que se tracem alianças talvez imprescindíveis para um governo com problemas, mas imperdoáveis pelo fato do que elas poderiam significar em um futuro com os militares outra vez ativos nos assuntos internos.

Segundo Alberto Binder, integrante do Acordo de Segurança Democrática e da Iniciativa Cidadã para o Controle do Sistema de Inteligência (ICCSI), “Milani é um sapo muito grande para este governo. Primeiro, se vamos traçar uma linha sobre quem teve participação na ditadura, é preciso ser claro. Então, Milani fica do lado dos que nunca podem ser chefes do Exército por mais que se diga que era jovem. Segundo, dar poder à inteligência militar no contexto atual, em que há uma pressão internacional muito forte para que os exércitos se metam no tema do narcotráfico, terrorismo e segurança nacional, é outra vez brincar com fogo. Terceiro, dar um projeto político de desenvolvimento nacional ao Exército é não reconhecer a história que temos. Não precisamos do Exército nas cidades com La Cámpora. É muito prejudicial essa restauração do Exército como sujeito político interno que vai se metendo por um lado e por outro”.

Em definitivo, o que Milani conseguiu foi arranjar um grande negócio com o kirchnerismo. Trocou lealdade por uma autonomia cada vez maior, algo que muito poucos conseguiram. O argumento do general é a inteligência. E a mentira. 

O batalhão inimigo

Hugo Agapito Ledo, natural da cidade de La Rioja, então estudante de Filosofia na Universidade de Tucumán, fazia parte da Frente Inimiga, uma estrutura criada na década de setenta pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT-ERP) para coordenar os militantes, aspirantes e simpatizantes em idade de fazer o serviço militar. O objetivo era prepará-los para realizar tarefas de inteligência nas fileiras inimigas. Todas as averiguações faziam-se úteis com a finalidade de um maior conhecimento das Forças Armadas, de suas instalações e capacidade, de seus planos e objetivos. Quem integrava essa rede secreta também tinha como missão as tarefas de recuperação de armas, munições, equipamentos, além da realização de sabotagens de forma permanente.

Em 1973, durante a tentativa da tomar por meio das armas o Comando de Saúde por parte do ERP, quem abriu as portas para a entrada no quartel foi o recruta Hernán Invernizzi, que como consequência ficou mais de dez anos preso. Em 1974, a mesma organização guerrilheira assaltou o Regimento 17 das Tropas Aerotransportadas com sede em Catamarca, contando com a colaboração de alguns soldados que atuavam naquela unidade militar. Em seu livro O esquadrão perdido, José D’Andrea Mohr conta 129 recrutas desaparecidos dentro dos quarteis durante os anos setenta. Investigações realizadas pelo Instituto Espaço da Memória de Santiago do Estero confirmam que vários deles pertenciam à Frente Inimiga. É o caso de Hugo Milcíades Concha, de Santiago, então estudante de Engenharia da Computação, que foi emboscado por seus chefes em 17 de maio de 1976 nas cercanias de seu próprio quartel, o Batalhão de Engenheiros de Combate 141. Germán Cantos, também de Santiago e membro da Frente Inimiga, era estudante de Psicologia edesapareceu em 3 de setembro do mesmo ano. Assim como Ledo, foi acusado de desertor.

O então tenente César Milani assinou a ata de deserção do recruta Ledo em 17 de junho de 1976. Existem relatos críveis sobre o problema que representava para um integrante médio das Forças Armadas daquela época o fato de militantes revolucionários se infiltrarem em uma instituição que se sentia portadora da essência nacional. Nenhuma ofensa poderia ser maior para um militar de lei, inclusive com convicções democráticas. No entanto, Milani jura que aquilo foi um trâmite burocrático e fortuito. E, em que pese a intensidade alcançada pelos enfrentamentos, ele desconhecia absolutamente o marco político que rodeava o caso. Independentemente do que pensemos sobre o ocorrido nos anos setenta, é difícil calar a certeza de que o atual chefe do Exército mente.

Porta de ferro
 
No livro Civis e militares: memória secreta da transição, publicado em 1987, Horacio Verbitsky escreveu que “cada governo tem um tema com o qual se identifica e em relação ao qual se prestam contas. Perón foi criticado pela sua política institucional, sem que isso resultasse na diminuição da sua assombrosa popularidade. Mas seu governo entrou em crise em 1952, quando mudou o discurso da justiça social pelo da produtividade”. O mesmo critério foi utilizado pelo jornalista e pesquisador para julgar o governo de Alfonsín, quando as promessas radicais em matéria de reconstrução da soberania democrática foram por água abaixo e anteciparam um triste e explosivo final.

O kirchnerismo tentou reunir os dois principais fundamentos que instituíram legitimidade durante o século passado: redistribuição de renda mais direitos humanos. Em ambos os campos, o governo emite sinais de certa mudança de rumo, em um contexto ordenador e normalizados. Como se admitisse que começou a fase de declínio, pretende fazer uma transição sem sobressaltos em um cenário cuja virada à direita parece ineludível. Sem ânimos nem disposição para um balanço crítico sincero, o horizonte das forças comprometidas com “o projeto” pode ser de desagregação ep erda de autoridade moral para discutir o que está por vir. A resolução do affair Milani terá um peso determinante nesse dilema. “Eu sei que quando, quando a Cristina sair, terei que me exilar”, disse o general militante a um militar de alta patente em uma conversa de amigos. Os homens e as mulheres passam. As cagadas permanecem.

 
Originalhttp://www.revistacrisis.com.ar/el-general-militante.html
 
Tradução: Daniella Cambaúva


Créditos da foto: Arquivo

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