segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pedro Casaldáliga - carta pastoral 4/8

Fonte:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigrejaparte4.htm


Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social

(parte IV/8)



POSSEIROS

Os primeiros desbravadores da região são os hoje chamados posseiros(nota 5). Localizados aqui há 5, 10, 15, 20 e alguns até 40 anos. Cultivando o solo pelos métodos mais primitivos, plantando arroz, milho, mandioca. Lavoura de pura subsistência. Criando gado. Sem a menor assistência sanitária e higiênica, sem nenhum amparo legal, sem meios técnicos à disposição. Aglomerados em pequenos vilarejos, chamados Patrimônios (que foram vendidos pelo Estado como terras virgens - Santa Terezinha, Porto Alegre/Cedrolândia, Pontinópolis) ou dispersos pelo sertão afora a uma distância de 12 a 20 Km uns dos outros.

Após o início das atividades agropecuárias ligadas à SUDAM, uma série de dificuldades surgiram para este abnegados e sofridos camponeses - desbravadores.

Vamos mostrar umas situações-tipo das gritantes injustiças praticadas contra eles.


SANTA TEREZINHA

O povoado de Santa Terezinha acham-se situado às margens do Araguaia, em frente a Ilha do Bananal, a 140 Km ao Norte de São Félix, não muito distante da divisa com o Estado do Pará. Santa Terezinha foi um dos lugares mais prejudicados da região devido à presença da CIA. DE DESENVOLVIMENTO DO ARAGUAIA - " CODEARA", de propriedade dos Srs. Armando Conde, Carlos Alves Seixas e Luiz Gonzaga Murat, que lá se estabeleceu em 1996, (cf. Documentação, nº II, 1. e VIII) com o titulo de propriedade de toda aquela área, inclusive a urbana, numa extensão de 196.497,19 ha. A presença da Companhia veio trazer para os pacíficos moradores em número superior a 80 famílias, a intranquilidade e a insegurança, por causa das atitudes tomadas pela companhia que os vinha prejudicar diretamente.

Os primeiros habitantes chegaram ao local em questão em 1910 e se estabeleceram no chamado Furo das Pedras. Em 1931, já haviam sido construídas igreja, escola e casa para os missionários.

Quando a companhia veio a se instalar, estavam em pleno funcionamento também a " Cooperativa Agrícola Mista do Araguaia", que congregava os trabalhadores e posseiros da área, e o ambulatório médico. Apesar de tudo isto, aquela foi vendida como desocupada, como mata virgem. E a companhia se sentiu no direito de despojar os pobres moradores do pouco, da insignificância que possuíam. E começou contra eles uma guerra de ameaças, de invasões de terra, invasões de domicílio, prisões, etc. (cf. Documentação, nº II, 1. F. L. G 5). A política estadual também esteve a serviços dos interesses da CODEARA. Era transportada, alojada e alimentada pela mesma companhia. (Documentação, nº II, 1. A, I, J.). E, cinicamente, a CODEARA publicava em "EXPANSÃO", órgão informativo do Sistema BCN-FINACIONAL, de abril de 1970, ano I nº 6: " Os elementos humanos típicos eram o índio e o caiçara (sic). Sua forma de vida eras das mais primitivas. Caçavam, pescavam e cultivavam milho e mandioca. Habitavam em casas de sapé, em nenhuma noção de higiene; resumindo, eram selvagens" (sic) ... "Existe hoje o que se pode dizer conforto. A cidade de Santa Terezinha, também fundada (sic) por Codeara..."

Mas, diante da espoliação prometida e pretendida, o povo se uniu e juntamente com o Padre Vigário da Paróquia, Pe. Francisco Dentel, decidiram lutar para salvaguardar o que era seu. Foi feito relatório em 12/4/67 ao senhor Presidente da República, Mal. Arthur da Costa e Silva, sobre a situação e dando sugestões concretas de solução (cf. Documentação II, 1. A). Muitas viagens foram feitas. Muito dinheiro foi gasto. Muitas cartas foram escritas. (Documentação, nº II, 1). Muito teve que se esperar para poder se vislumbrar alguma pista de solução, apesar de o Sr. Presidente ter despachado em 29/11/67, para o Sr. Ministro da Agricultura, para que providenciasse a solução. Todos os impecilhos foram colocados para se evitar o cumprimento do despacho presidencial. Autoridades policiais, do exército e do SNI foram movimentadas diante das acusações forjadas pelos donos da companhia contra o Padre e o líder dos posseiros, como sendo elementos subversivos(nota 6). (Documentação, nº II, 1. H).

Três anos de espera foram necessários até que a companhia, forçada e a contragosto, "doou" a migalha de 5.582 ha., em 05 de maio de 1970, que ainda serão repartidos entre mais de 100 famílias de posseiros.

Antes porém, em mancomunação direta com o Secretário de Segurança Pública do Estado do Mato Grosso, Cel. Diniz (após reunião havida no dia 1 de maio de 1970 na Fazenda Suiá-Missu entre os empresários, o Governador do Estado, o Ministro do Interior, Costa Calvacante, e outras autoridades), no dia da inauguração do Hospital da fazenda pelo Sr. Ministro do Interior e o Superintendente da SUDAM, Gal. Bandeira Coelho, os diretores da companhia, a 2 de maio, quiseram manifestar sua força contra os posseiros, fazendo prender seu líder, o Sr. Edvald Pereira dos Reis. E quem o prendeu foi o próprio Cel. Diniz (Documentação, nº II, 1. I, J). O Sr. Reis esteve preso durante 72 dias em Cuiabá, sem acusação formada e foi libertado sem sequer ter sido julgado.

O caso de Santa Terezinha ainda não está solucionado. A área urbana pertence à companhia. Quem quiser construir ou fazer qualquer benfeitoria tem que pedir autorização à companhia plenipotenciária. Qualquer novo terreno tem que ser comprado dela; isto também devido à inoperância do Sr. Prefeito de Luciara, já que a Câmara Municipal em 17/9/70 aprovara a desapropriação da área urbana de Santa Terezinha e crédito especial para efetivar a referida desapropriação. (Documentação, nº II, 2. B).

Atualmente a companhia está construindo prédio no meio da rua. Faz o que quer. Tudo lhe pertence.


PORTO ALEGRE

Porto Alegre (com Cedrolândia) é um povoado situado entre os rios Xavantin e Tapirapé, no município de Luciara, distando mais de 200 Km. da sede.

Em 12 de junho de 1970, os proprietários da AGROPECUÁRIA NOVA AMAZÔNIA S/A - FRENOVA, fixaram residência no povoado dizendo pertencer toda a área sede do patrimônio, bem como sua zona rural, à companhia. Porto Alegre possuía em sua sede 35 famílias e 180 na zona rural. Funcionava Escola com freqüência de 120 alunos.

Logo começou a pressão dos proprietários, contra os posseiros, muitos dos quais estabelecidos há mais de 20 anos (Documentação, nº II, 2. A). Queria-se a retirada dos mesmos. Que vendesse suas benfeitorias e abandonassem suas pobres posses.

O Pe. Henrique Jacquemart, de Santa Terezinha, passando por lá na oportunidade, esclareceu o povo quanto a seus direitos. O gerente-proprietário, Plínio Ferraz, ciente do acontecido, aconselhado pelo advogado Olímpio Jaime (o mesmo advogado que agira contra os posseiros de Santa Terezinha, ex-deputado cassado), prometeu pagar a dois "capangas", Sebastião e João, para "dar uma surra até o fim" (sic) no Padre que estava missionando pela reunião. Os dois supostos capangas voltaram depois de algum tempo à sede da fazenda, dizendo ter executado a ordem e querendo receber o dinheiro prometido, que, aliás, era dívida que a fazenda tinha com eles. Receberam o dinheiro e montaria para fugir, com carta de recomendação para uma fazenda próxima a Conceição do Araguaia. Os dois ao chegarem a Santa Terezinha procuraram o Pe. Francisco e lhe contaram o sucedido e se dispuseram a prestar depoimento diante das autoridades. Pe. Francisco foi com eles até Santa Isabel onde duas declarações perante elementos da FAB.

O Sr. Prefeito Municipal, José Liton da Luz, acompanhado do mesmo advogado Olímpio Jaime, reuniu o povo de Porto Alegre em 30/7/70 e se dispôs a "defendê-lo", dizendo ser necessário que cada um colaborasse, dentro de suas possibilidades, para pagar o advogado que iria advogar sua causa. Os posseiros presentes à reunião entregaram mais de 170 animais, entre reses e cavalos, e grande soma em dinheiro ao prefeito (Documentação nº II, 2. A). Prefeito e advogado apoderaram-se das doações dos posseiros e nenhuma providência tomaram na defesa dos mesmos. A 17/9/70, em sessão extraordinária da Câmara Municipal, foi aprovada a desapropriação de uma gleba de 4.500 ha., onde se encontra o povoado. (Documentação II, 2. B). Apesar disso, os posseiros estão recebendo ordens do próprio - pág.) Apesar disso, os posseiros estão recebendo ordens do próprio Sr. Prefeito de abandonarem suas posses, entregando-as à FRENOVA . E mais. O Prefeito autorizou a fazenda a se apropriar do material escolar de Porto Alegre, transferindo-o para a companhia. O que realmente aconteceu. Os funcionários da FRENOVA, após terem apanhado o material escolar, derrubaram a escola do povoado.

Os que, cedendo à pressão da companhia, vendem suas posses, são transportados em avião ou caminhão da empresa e abandonados à beira das estradas sem o menor recurso e amparo. (Documentação, nº II 2. C).

É a tão decantada agropecuária da Amazônia, "fator do progresso da região" espoliando o pobre e indefeso camponês, posseiro de uns poucos metros de terra, sem ter ninguém que se preocupe eficazmente com ele. A Polícia Federal esteve no local. Mas o povo não teve condições de se manifestar, temendo posteriores represálias por parte da prefeitura e da companhia.

A preocupação da região é o gado. O homem ...


SERRA NOVA

Localiza-se o Patrimônio de Serra Nova, na Serra do Roncador, entre o rio das Mortes e a rodovia BR-158, no distrito de S. Félix, município de Barra do Garças.

Mas de 120 famílias lá residem, com número de habitantes superior a 800. Estão matriculados 113 alunos no curso primário.

Serra Nova nasce em plena floresta amazônica, à base do mutirão, do machado e da força de vontade. Sem assistência. Sem apoio. Surgiu da necessidade do povo de se reunir, visto viverem isolados uns dos outros, há 6, 8, 10 e 12 anos, sem possibilidade de se encontrarem, de terem escola e outros benefícios que a união traz. Alguns deles já foram "tocados" de outras posses até 6 vezes.

Este patrimônio, assim constituídos, defronta-se no presente com um grave problema com a "BORDON S/A AGROPECUÁRIA DA AMAZÔNIA". Suas terras de lavoura foram cortadas pela "picada" demarcatória dos limites da fazenda, ficando várias das roças, indispensáveis a sua sobrevivência, dentro destes limites. O clima de tensão começou a reinar entre o povo. As terras, seu meio de vida, estava sendo ocupadas. Isto acontecia no dia 20 de abril de 1971. Tentou-se o diálogo com os proprietários, não se obtendo resposta (Documentação, nº II, 3. A). Apelou-se para as autoridades: Presidente da República, Ministro do Interior, SUDAM, Ministério da Agricultura, SNI, Governo do Estado, Prefeitura Municipal, e nenhuma atitude concreta foi tomada (Documentação, nº II, B).

Na hora de se fazer a queima das roças, a fazenda ameaçou seriamente a segurança de todos, prometendo que seria derramado muito sangue caso algum posseiro ousasse colocar fogo nas derrubadas. A 25 de setembro, data marcada pela própria fazenda para a queimada (já a houvera impedido no dia 27 de agosto), o empreiteiro Benedito Teodoro Soares recebeu do gerente, Antônio Ferreira da Silva, armas várias delas automáticas, de 15 tiros e munição, conforme pedido feito pelo Sr. Benedito ao próprio Sr. Geraldo Bordon, dias antes (nota 7).

A cerca de alarme está sendo colocada, isolando assim as roças abertas, cortando a área vital para o patrimônio. A ultrapassagem desta cerca por parte dos posseiros, para o cultivo de suas roças se apresenta com perspectivas bastante funestas. E ainda mais. A fazenda está prometendo semear capim nas terras que circundam as roças dos posseiros, fato este que emprestaria inexoravelmente as terras cultivadas, visto ser o capim praga fatal para a lavoura e sabendo-se também que, nas grandes fazendas, o capim é semeado por aviões.

É a vida de um povo que se está tentando impedir.


PONTINÓPOLIS

Situado a uns 120 Km. de São Félix, há 10 anos está em conflito, aguardando solução muitas vezes prometida. Atualmente vivem na área deste patrimônio de posseiros umas 300 famílias.

A questão de Pontinópolis data dos idos 1961/62, época da criação da Agropecuária Suiá-Missu, então de propriedade do Sr. Ariosto da Riva. Foi feita a demarcação da atual Suiá-Missu e alguns dos moradores da redondeza foram empregados como mãos-de-obra para este empreendimento. Dentro da área demarcada, morava há uns três anos o Sr. Anastácio que foi convidado a retirar-se, tendo sido indenizado. "Grosso", "Chicão", Vicente e Pedro abriram naquele ano suas roças, construíram suas casas e, no momento de iniciarem o plantio, foram mandados embora, sem direito algum. Por um ato de "grande bondade", Ariosto permitiu a "Grosso" tinha oito filhos pequenos. Pouco tempo depois, a Suiá-Missu foi vendida, continuando a pertencer a maior parte das terras circundantes ao Sr. Ariosto.

Em 1961/62 o Sr. Ariosto, comunicando-se com os posseiros da área, afirmava que não ia tirar ninguém do lugar, que precisava mesmo dos serviços do povo. Mas em 1965, "Pedrão" e "Joaquim Paulista" - este último carregando ostensivamente um revólver - apresentaram-se como enviados do Sr. Ariosto, intimando-os a deixar suas terras: "Ou sair ou morrer" era a ordem.

Muitas famílias, realmente intimadas, abandonaram as posses, por haver ameaças de que a Polícia interviria e poria fogo nas casas. Alguns até abandonaram criações, pois não havia quem as quisesse comprar.

Diante de tais ameaças, o povo reunido realizou uma coleta de dinheiro e incumbiu os posseiros José Antônio dos Santos e Antônio Batista Gomes de apelar para as autoridades. Em setembro de 1966, em Cuiabá, o Sr, Bento Machado Lôbo, funcionário da INDA prometeu-lhes 15.000 hectares de mata, acrescentado que se a área não fosse suficiente, seria aumentada. Foram feitas, por conta própria, mais de 8 viagens, a Brasília e Cuiabá para solucionar o caso do patrimônio.

Mas no momento de a demarcação ser feita,, a área de mata (terra boa para a lavoura) abrangeu apenas 20% do total, por ordem do Sr. Ariosto da Riva, contrariando a determinação explícita do INDA.

Em 29 de julho de 1967, 0 Sr. Ariosto falando com alguns posseiros dizia-lhes que não se preocupasse com a medição, pois ela serviria só como levantamento e atenderia às necessidades de todos. Em outra oportunidade, porém, afirmava que ele entregaria a área de terra demarcada e... "Vocês - acrescentou - fiquem brigando aí dentro".

A maior parte do povo acha-se localizado com suas roças e benfeitorias fora dos 15.000 hectares demarcados, havendo ainda umas 30 famílias fora da área onde está a maioria.

Faz quase 5 anos que este povo aguarda a vinda do Sr. Ariosto para um encontro no qual sejam resolvidos as questões pendentes. Encontro que várias vezes foi prometido, mais não concretizado.

Após quase dez anos de luta este povo ainda se encontra em grande insegurança em área de milhares de hectares de terras incultas e que pertencem a latifundiários do sul.


ESTRADAS E OUTROS

Além dos casos citados há muitos outros ainda. São posseiros localizados á margem da estrada ou pelo sertão afora, que constantemente são oportunados pelos novos proprietários, ou seus propostos, para que abandonem as posses, oferecendo-se-lhes ridículas indenizações, conforme pode-se ver pela carta enviada ao Sr. Domingos Marques, um dos proprietários (Documentação, nº II, 4).

Em situação idêntica encontra-se, há vários anos, os moradores - camponeses ou pequenos criadores de gado - da Ilha do Bananal, por causa da indefinição do destino da mesma Ilha e das ordens e contra-ordens que se vem dando a estes sertanejos.

Ao redigir estas linhas, tomamos conhecimento do recente Decreto Federal, com data de 22 de setembro de 1971, criando o Parque Indígena do Araguaia, que inclui a Ilha do Bananal. Não sabemos qual a sorte dos posseiros. Mais um interrogante e uma incerteza.

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Notas:

5- A publicidade faz dos fazendeiros os bandeirantes da região. O Sr. Ministro da Agricultura, Cirne Lima, porém, falando aos técnicos reunidos pela " Semana do Veterinário", em Brasília, diz que "o boi deverá ser o grande bandeirante da década..." (cf. O Estado de São Paulo - 15/9/71).

6- Por esta mesma causa deixamos de publicar boa parte da documentação pois, isto, com certeza, iria afetar gravemente as testemunhas.

7- Segundo testemunhas oculares do fato, cujos nomes preferimos manter em segredo.


~ Gregory Colbert

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