segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Pedro Casaldáliga - carta pastoral 7/8

Fonte:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigrejaparte7.htm



Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social

(parte VII/8)


POLÍTICA LOCAL


Causa principal, também, e sobretudo cobertura da injustiça reinante na região é a política local, decididamente. Política do interior, característica em muitas regiões do Brasil: coronelismo, poder hereditário, oligarquias locais (fazendeiros, políticos, comércio, polícia) perfeitamente entrosados no interesse e no domínio absoluto.

O voto é comprado da ingenuidade do povo, nas campanhas eleitorais exuberantes de promessas. Os votantes são trazidos em massa, em conduções coletivas. Nunca tiveram a possibilidade de escolher livremente um representante verdadeiro.

Há necessidade de adular os poderosos (para comprar fiado; para não ver filhos sem escola elementar; para conseguir um documento, uma influência, um cargo). Os manda-chuvas "servem" ao povo com um paternalismo triunfante e orquestram os seus dons - mínimos, atrasados, com freqüência fraudulentos. Há clima de terror, e o fatalismo passivo do povo que sabe que " sempre foi assim" (" polícia é assim mesmo"), ou aquela falta de liberdade para se expressar, para prescindir, para reclamar. Tudo isto faz da política local destas regiões uma opressão estabelecida e legal.

Barra do Garças está nas mãos de um clã de famílias, desde a fundação do município, que controlam amplamente a Administração, o Cartório, o Ensino e a Polícia locais. O Sr. Ladislau Cristino Cortes é prefeito de Barra do Garças pela terceira vez. Fazendeiro, proprietário de 8 fazendas, a sua polícia é declaradamente de apoio e cobertura ao latifúndio da região.

Mesmo com uma extensão de 121.936 Km2, e densidade demográfica só de 0,22, (IBGE, 1970) a arrecadação é extraordinária. Os distritos, porém, com seus diferentes povoados, vêm reclamando inutilmente uma atenção mínima. (Para um simples aterro do trecho alagadiço da estrada de S. Félix foi preciso escutar promessas durante anos).

A prefeitura de Luciara foi criada em 1966. A fraude e o terror mais notório vêm dominando a Administração Municipal. O primeiro prefeito foi o "velho Lúcio da Luz", fundador da cidade, e o segundo, Leonardo Barros, está ainda foragido, depois de subtrair a importância de Cr$- 80.000,00. Com respeito ao atual prefeito, Sr. José Liton da Luz citar um caso mais diretamente vinculado com o problema latifúndio, veja-se o que escrevemos sobre Porto Alegre (Documentação, II, 2). Nas duas prefeituras, a escolha de professores, a remoção e pagamentos, estiveram normalmente ao capricho dos políticos locais. E nos dois municípios, a Prelazia entrou em conflito, neste ramo,. por tentar defender sua política de ensino, livre e desinteressada...


FALTA DE ASSISTÊNCIA BÁSICA

Os moradores da região, em condições de pura sobrevivência, submetidos `as provas do clima tropical e desatendidos por parte das autoridades e dos organismos responsáveis, vivem numa falta habitual de assistência básica.

Dei já uma referência, em matéria de ensino, no que diz respeito à política local condicionante. Devo acrescentar que as irregularidades na nomeação e pagamento dos professores; na construção, manutenção e higiene das escolas; no fornecimento do material escolar mais rudimentar são muitas e constantes.

Grande porcentagem de crianças e rapazes da região não têm acesso às aulas. Há escolas com uma só professora ou duas, estando, os alunos de diferentes idades e graus, misturados. A prefeitura de Barra do Garças tem nomeado várias professoras conhecidas publicamente como prostitutas. O nível de preparação do professorado - fora os professores que a Missão conseguiu engajar é de 1º, 2º, 4º ano primários. Não há em toda região um só professor ou professora normalista. Geralmente é o povo ou Prelazia que deve enfrentar a construção do prédio escolar. Faltam carteiras, cadernos, livros, quadro negro, giz. Os professores do Curso Primário recebem um ordenado de Cr$- 100,00 e 125,00, com atrasos de seis mês e até de ano inteiro. Os professores do Ginásio Estadual de São Félix - construído pela Prelazia - recebem Cr$ 120,00 por mês e com atraso superior a 4 meses. A Irmã diretora do Grupo Escolar de São Félix teve que desafiar, este ano, a política caprichosa do Secretário Municipal de ensino de Barra do Garças para a própria sobrevivência do Grupo.

A saúde é um problema trágico em toda a região. Um problema sem solução para 80% dos moradores. Dentro dos 150.000 Km2 do território da Prelazia - e numa imensa área circundante imediata - só existe o Hospital do Índio, em Santa Isabel, em condições precaríssimas de atendimento, e com um só médico, intermitente. O Hospital é propriamente só para o índio. Por concessão, atende-se, dentro dessa precariedade, o pessoal não indígena, à base de Cr$- 30,00, a consulta e de Cr$- 45,00, a diária. Os dois únicos postos de saúde existentes foram criados e são mantidos pela Prelazia. Os abusos de alguns farmacêuticos "práticos" ou de curandeiros descarados que vendem medicamentos a preço exorbitantes ou amostras grátis, provocando endividamento estrangulador, são habituais e notórios.

Os chamados "farmacêuticos" de algumas fazendas, na maioria dos casos não passam de aventureiros e irresponsáveis. O divulgado Hospital da Codeara nem médico tem.

"A higiene é precária; há poucos conhecimentos relativos à saúde. Um grande prejuízo são as crendices e as superstições... O povo não tem noção do alto valor da saúde, e desconhece os meios de evitar a contaminação, não tem consciência da existência de germes e vermes e não teme os insetos que tem abrigo comum com a família.

"As crianças andam nuas e descalças até os 6 anos; depois adotam uma tanguinha. Arrastam-se pelo solo de terra batida, contaminada pelas excreções dos animais e das pessoas, expostas assim às variadas infecções e infestações.

"São comuns as conjuntivites que atingem todos os membros da família, assim como as gripes.

"A carne em geral, mesmo nos açougues fica exposta à poeira, às moscas e mosquitos. fora da geladeira. Quando chega à casa já vem meio deteriorada e contaminada. A carne seca fica dias e dias ao sol, suspensa nos quintais, sem qualquer proteção. Quando surgem os problemas intestinais, ninguém pensa nessas carnes ingeridas, já em início de putrefação e infeccionadas por muitos tipos de germes.

"A água retirada do poço ou do rio é colocada nos potes, sem torneirinha, sem qualquer tratamento. Aí ela fica fresquinha, mas é retirada com vasilhas já usadas, levadas pelas mãos, muitas vezes sujas, que mergulham com o copo e enriquecem a cultura dos germes dentro dos potes..."

"... Enfrentam a doença própria e alheia com grande sangue frio e a suportam como um mal contra o mal não vale a pena lutar. O mesmo se diga em relação à morte que eles "acolhem" como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro é comum. É um povo sofrido de verdade. Só mesmo quem testemunha pode falar e o faz com grande angústia, percebendo a vida infra-humana esta gente, que não tem consciência dos seus próprios direitos de pessoa humana. As crianças se apresentam com verminose e anemias; são poucas vivas, olhar parado e sem brilho, esclerótica amarela e mucosa descoradas; abdômem distendido, com intenso meteorismo.."

"... Os dentes ao nascer já se estragam e a segunda dentição tem o mesmo destino.

"Os adultos poucos esclarecidos vêem-se logo atacados pela malária, hepatite e pelas doenças venéreas..."

"... Falta assistência ao recém-nascido e à criança em geral. Há grande mortalidade (infantil) por tétano umbilical e infecções gastrointestinais, nos 4 primeiros, nos 4 primeiros anos. Falta assistência à gestante, à parturiente e à puérpera. A paciente dá á luz no seu próprio barraco em condições higiênicas as mais precárias, não dispondo de condições elementares e humanas para uma atendimento condigno. Dá à luz rodeada dos demais filhos, de vizinhas e as vezes é assistida por uma "curiosa" que talvez complique mais a situação das crendices e superstições.

"Nos casos de fratura de membros, o paciente repousa até conseguir andar ou movimentar-se, sem ter a noção de uma redução e contenção provisoriamente até a mobilização definitiva. E daí a conseqüência de pessoas coxas e com membros defeituosos, defeitos aceitos passivamente e superados com uma coragem impressionante..."

"... São comuns entre os povos as seguintes doenças: Malária; hepatite; infecciosa; úlcera de Bauru; desidratação aguda (adultos e crianças); verminoses de todos os tipos, principalmente ascaridíase, teníase, ancilostomíase, acarretando profundas anemias; afecções venéreas: blenorragia, cancro mole ("cavalo"), cancro duro, linfogranulomatose inguinal ("mula"), granuloma venéreo ("cavalo de cristal"); alguns casos de picadas de cobra, escorpião e aranha; tétano umbilical, geralmente letal; afecção dentárias, desnutrição". (Relatório sobre a Prelazia, da Ir. Maria de Fátima Gonçalves).

Devem-se acrescentar a essa lista do relatório, o reumatismo, as afecções respiratórias, a leishmaniose. A perda da vista é muito freqüente.

A habitação "em geral é feita de barro cru, algumas de barro cozido, outras de pau-a-pique. A cobertura é de folhas secas de coqueiro. Agora há algumas olarias (rudimentares) onde se fazem tijolos e começam a surgir casas de tijolo e cimento, com cobertura de telhas... Essas casas não têm forro". As instalações sanitárias "são bastante precárias; em geral localizadas no fundo do quintal: fossa rente ao chão, base de madeira, sem qualquer cobertura, em local incômodo, sem porta; protegida por uma "cortina" de caso de estopa que se agita ao sopro do vento... e onde à noite se abrigam galinhas e muitos insetos rodeadores..."

"... Não há coleta de lixo. Quintais e ruas recebem o lixo que as pessoas menos cuidadosas não queimam. Não há mesmo o cuidado de coletar o lixo em latas. Em algumas pensões joga-se pela janela todo o tipo de lixo; os restos alimentares são rapidamente procurados e devorados pelos cães..." "... Galinhas, cães e porcos freqüentam os mesmos aposentos e muitas vezes usam as mesmas vasilhas (que as pessoas)". "Os ambientes são infestados de moscas, mosquitos, baratas, e ratos. As fossas sobretudo, são verdadeiros viveiros de enormes baratas, afugentadas à noite pela chama de uma vela, ou lampião, dando um espetáculo. às vezes até dramático, quando a pessoa não está acostumada e é surpreendida por esta fuga das baratas que buscam aflitas o interior da fossa..." (Relatório sobre a Prelazia, Irmã Mª de Fátima Gonçalves.

"A alimentação básica é o feijão, arroz, carne, farinha (de mandioca), peixe, banha. Nota-se grande ausência de frutas, verduras, leite. O leite de vaca existe no início do inverno (chuvas), quando há pastos em abundância. Na seca desaparece o pasto; e no inverno fica tudo alagado e as estradas são intransitáveis. Não (se) comem verduras em abundância, devido as dificuldades de cultivo (pragas, época da seca, falta de adubo...) e também preguiça e ao preconceito: "Verdura é comida de lagarta", "Capim é para boi".

"No tempo da seca as frutas desaparecem quase por completo. "Expressões, como esta denunciam a carência alimentar: "Comemos macarrão uma vez por ano". As refeições normais do sertanejo são três: café, almoço e janta. Os de mais recurso tomam café com pão. A maioria é café com "isca" (alguma mistura) ou "Bolo de sopapo" (bolo de farinha). Muitos só café "magro", sem "isca". E isto foi constatado entre o aluno do ginásio. Muitos vêm à aula sem tomar nada de manhã..." "...A merenda não é adotada pelos mais pobres como denota esta frase: "Merenda só na época das vacas gordas". Esta fome crônica, como dizia Josué de Castro, mata mais que as guerras. Um povo sub-alimentado é presa fácil das doenças, pois não há resistência para elas num organismo debilitado. Eu garanto que se houvesse higiene e boa alimentação, 80% das doenças desapareceriam nestes sertões..." ("Pesquisa Sociológica" citada).

Não há serviço normal de correio em toda a região da Prelazia. E as estradas de terra alagam perigosamente na época das chuvas, ou são materialmente intransitáveis. Nenhuma cidade possui luz elétrica (exceto Luciara, umas três horas por noite), nem esgotos, nem água encanada, nem ruas sequer encascalhadas...

Há dois ônibus por semana - a partir de outubro, 3 - de Barra do Garças a São Félix : dia e meio de viagem, e um ônibus semanal de Barra Luciara. A VASP - com aparelhos primitivos - serve a região em dois vôos semanais, ida e volta. O Araguaia e o Rio das Mortes são transitados por barcos, lanchas ("voadeira") e canoas. Existe o serviço extraordinário dos teco-tecos (a Cr$- 1.200,00 de São Félix a Goiânia). A FAB presta vários serviços de emergência.

O COMÉRCIO facilmente é trust, também nesta região. E coincide com o poder dominante da política e das fazendas, em interesses combinados. As distâncias e os fretes "justificam" os mais exorbitantes abusos. Não há nenhum controle fiscal. O preço é geralmente 50% superior ao normal.


MÁ DISTRIBUIÇÃO ADMINISTRATIVA

Há extenção dos municípios já é uma estrutura de desequilíbrio social. A distância da sede do Município traz consigo o máximo desinteresse e esquecimento por parte das autoridades, a impossibilidade de recurso e protesto por parte do povo. (Barra está a quase 700 Hm de São Félix).

Há um só Juiz de Direito em toda a região e passamos até um ano sem Juiz. São Félix ainda não é município e certos meios interesseiros querem impedir sua emancipação.

A polícia local - freqüentemente mandada para cá por castigo, vende-se com extrema facilidade aos pode do comércio ou das fazendas, usa e abusa do seu poder onipotente nos povoados, espanca e xinga e patrocina as imoralidades dos prostíbulos, as "deflorações" e outras irregularidades públicas (nota 9)(Documentação, nº V).

Outro gravissímo pecado administrativo - que atinge mesmo os órgãos federais da Administração agrária - é a descontrolada queima de terras, o emprego das melhores áreas de lavoura para pasto do gado do latifúndio e a total falta de assistência técnico-agrícola aos camponeses da região, que continuam plantando com os recursos e os sistemas mais primitivos.

As autoridades estaduais e federais só visam os grandes empreendimentos latifundiários da região, que já foram visitados em festas, encontros e inaugurações. Nunca nenhuma delas pisou o solo destas vilas e patrimônios, excetuada a Polícia Federal, em casos de emergência. Algum candidato a deputado apareceu na hora de pedir votos...

Falei da passividade do povo, do seu fatalismo. Ele sabe, por uma longa e dolorosa experiência, que não tem voz para se fazer ouvir. Excepcionalmente - depois de anos de escravidão - um peão arriscado poderá provocar uma intervenção da Polícia Federal, na Codeara, por exemplo, ou a intervenção, ambígua demais, da oficialidade de Barra do Garças.

Os padres, por um triste clericalismo, sempre mais ou menos beneficente, faltando outras saídas mais legítimas, resolvem agora ou tentam resolver muitos casos de gritante injustiça, emprestando voz e letra aos que não tem. Sempre sabendo que uma decisão legal significará meses, anos de espera exasperante, de conflitos, de espoliações inqualificáveis, e talvez de sangue, como vem acontecendo no regime de escravidão das Fazendas, na bagunça atuação da Polícia local, e em vários atritos fazendeiros/posseiros (como os da Frenova/Porto Alegre, Bordon/Serra Nova, Ariosto/Pontinópolis...).


__________________________________________________
Nota:

9- Um último fato, ocorrido em 27 de setembro de 1971, veio provocar a indignação do povo de S. Félix. Estupidamente, a polícia baleou um pai de família, matando-o. O povo decidiu reunir-se para estudar o caso, no que teve apoio do Padre José Maria Garcia. Os policiais, ao saberem da realização da reunião, na qual se decidiu apelar para a Polícia Federal, ameaçaram matar o Padre e alguns outros elementos que se sobressaíram nesta região. O Padre e estes elementos tiveram que se refugiar junto ao destacamento da FAB, em Santa Isabel. Aguarda-se para breve a intervenção da polícia Federal, segundo promessas feitas em Brasília diretamente ao Pe. José Maria, escolhido pelo povo para representá-lo diante das autoridades.


~ Gregory Colbert

Nenhum comentário:

Postar um comentário