sexta-feira, 28 de outubro de 2011

comissão da verdade

fonte: carta maior
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Direitos Humanos| 28/01/2010 | Copyleft 

As marcas das ditaduras e a revelação dos sobreviventes

O Projeto Direito à Memória e à Verdade organizou, em Porto Alegre, o Seminário "Sobreviventes: Marcas das Ditaduras nos Direitos Humanos”, como atividade paralela ao FSM. Os sobreviventes convidados foram o jornalista Bernardo Kucinski e a atual secretária de Direitos Humanos da cidade do Recife e fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo. Não se trata propriamente de saber quem são os torturadores; o sobrevivente e os sobreviventes o sabem. Trata-se de responsabilizar, apoderar-se do sentido, desvelar o que está, ainda, nas trevas.

"Só assim brilha a Revelação
Numa época que Te rejeitou
Teu nada é a única experiência
Que de Ti é permitida”

Gershom Scholem, em “Com um exemplar do Processo de Kafka”

“Uma sociedade com futuro é uma sociedade com memória. Não por conta do nunca mais, não, que eu não acredito nisso. Mas para que a vida em comunidade faça sentido”, disse Lilian Celiberti, na terça-feira (26), em Porto Alegre, pouco antes de Lula pegar o microfone. Lilian Celiberti, militante feminista uruguaia e uma das poucas sobreviventes da Operação Condor, sabe o que essas palavras significam. 

Mas o que elas querem dizer? O que organiza a exigência da memória na vida política de um povo? Por que essas palavras fazem sentido e como se pode traduzir a clareza na face de Lilian Celiberti, quando as pronunciou, para milhares de participantes do FSM?

O Projeto Direito à Memória e à Verdade – Aos que morreram na luta por um Brasil livre – organizou o Seminário “Sobreviventes: Marcas das Ditaduras nos Direitos Humanos”, na tarde do dia 27, como atividade paralela ao FSM. Os sobreviventes convidados foram o jornalista Bernardo Kucinski e a atual secretária de Direitos Humanos da da cidade do Recife e fundadora do Movimento Tortura Nunca Mais, Amparo Araújo. 

Quando Bernardo começou a ler o texto que preparou para a ocasião ficou dolorosamente evidente o quanto essas interrogações acima não são triviais. E exatamente por isso resplandeceram duas exigências, de natureza moral, anti-jornalísticas: não usar um gravador e não tecer anotações num caderno. A melancolia do sobrevivente é, observou Bernardo, incontornavelmente individual e em certa medida irredutível à linguagem. 

Agostinho de Hipona disse que “a morte era um embaraço para a linguagem”. E o desaparecimento, o extermínio, a tortura, a transmissão perversa da culpa e a perpetuação da suspensão do luto são embaraços para o quê ou para quem? Do que se faz essa impossibilidade de consumar o luto e qual a relação desse luto em suspenso com o silêncio que não se pode traduzir? Qual, enfim, é e qual deve ser o destino da culpa?

Bernardo Kucinski é um dos sobreviventes da ditadura militar brasileira que contabiliza, dentre os seus desaparecidos, sua irmã Ana Rosa Kucinski e seu cunhado, Wilson Silva. Ambos, desaparecidos desde abril de 1974, compõem parte do “nada” de Bernardo de que o poema de Gershom Scholem nos fala, a respeito do texto de Kafka. Compõem uma parte que talvez se pudesse chamar de continuidade, de um luto sem termo inicial claro. Ele falou do silêncio de seu pai, o imigrante judeu polonês Majer Kucinski, a respeito de irmãs mortas, uma, num campo de extermínio e outra, pelas forças de ocupação nazista na França. Desta tia descobriu o nome há pouco, disse, sem saber se era casada e como vivia. 

A sobrevivência parece se confundir, nas palavras que Bernardo vai lendo no microfone, com uma posição histórica. A sua mãe, Ester, também silenciara aos filhos que tinha tido toda a família exterminada pelas tropas nazistas na invasão da Polônia. E que seu tio era, junto a ela, o único sobrevivente daquele núcleo familiar desfeito para sempre. Bernardo conta que Ester morreu aos 50, de câncer, mas que tinha morrido mesmo naquele dia em que todos foram exterminados. Aquele dia em que o embaraço da linguagem se tornou um silêncio de décadas. Sobre essas coisas não se falava na sua casa.

O desaparecimento de sua irmã e de seu cunhado foi um episódio inimaginavelmente doloroso para a sua família. E parece ter sido por ocasião deste evento que Bernardo tenha explicitado o fio condutor da memória silenciada, que não aleatoriamente é o mesmo que liga as ditaduras. A culpa que guarda a pretensão da função de um predicado atemporal e intransitivo do sobrevivente foi exemplarmente apresentada, lembrou Berrnardo, em A Escolha de Sofia (William Styron, 1979). Por que o soldado alemão não matou as duas crianças, em vez de pedir à mãe que ela escolhesse, entre o filho e a filha, qual iria morrer? A despeito de quem seja esse sujeito, há um dispositivo que o ultrapassa e que opera, nessa ordem macabra, a perversidade da transmissão da culpa. A transferência da culpa para a vítima e, assim, a perpetuação do sofrimento. O destino da culpa de Sofia é o suicídio, como se sabe. O livro de Styron é obra de ficção; seu argumento, não.

O que está moralmente em jogo na exigência da verdade a respeito dos desaparecidos é o destino que essa culpa deve ter. Porque a exigência da verdade, da punição e da reparação, ao contrário da melancolia, habitam uma dimensão pública, política jurídica, estatal e histórica. 

Amparo Araújo é irmã do militante, desaparecido em 1971, Luiz Araújo. Ela demonstrou como se passa da melancolia confinada e irremediavelmente confinada, ao seu contrário: a ação pública, inegociável, juridicamente consistente, politicamente honrosa, de lembrar e exigir a reparação do Estado. Amparo poderia falar durante horas e dias sobre a sua trajetória e talvez não demonstrasse com a mesma clareza como se dá essa passagem, como quando disse que tinha voltado a ter pesadelos, por ocasião da reação lacaia à criação da Comissão da Verdade. Amparo pôs a mão no peito e disse mais ou menos: “Eu sempre tive uma dor só minha, aqui no meu colo, sabe?”, disse, com a mão repousando sobre o colo. “Pois agora voltou a doer, assim, fisicamente, de novo”. Essa dor deve ser retribuída, como justiça.

Uma das lições mais elementares do direito penal é a de que a conduta criminosa é singularmente imputável. O fundamento dessa exigência de imputabilidade é o pressuposto de que todo criminoso é, antecedentemente, uma pessoa de direitos. Toda punição no âmbito estritamente penal repousa na imputação legítima de uma culpa, feita pela lei e executada pelo Estado de direito. Essa estrutura da operação punitiva não se estende aos crimes do estado, e menos ainda aos crimes contra a humanidade. A humanidade, diferentemente da vítima a, b, c, não deixa de sê-lo, não desaparece enquanto tal da mesma maneira que os indivíduos, não é singularizável. Essas considerações rudimentares de direito talvez possam ser traduzidas com a afirmação já aceita no nosso STJ, por exemplo, de que direitos inalienáveis não prescrevem, a título de combate à indigente tese de aparência jurídica de que os crimes da ditadura teriam prescrito. 

Bernardo deixou claro que sabe quem são os torturadores, e é muito provável que também Amparo e demais vítimas das atrocidades da ditadura brasileira o saibam. A inversão do destino da culpa e a reparação não se situam no âmbito de uma relação comutativa, trivialmente retributiva, entre torturador e torturado, entre carrasco e cadáver desconhecido. O que faz com que, até hoje, pessoas procurem a família de Bernardo para dar pistas falsas da sua irmã, dizendo que ela está viva, morando no Canadá, por exemplo? Por que há o cuidado de reiterar a dor da perda, de cristalizar a angústia, de insistir em semear a hipótese da fraqueza, da frustração, da derrota? Se é a perversidade que explica essa conduta, e certamente o é, ela não é um traço singular, psicológico, qualquer, mas uma ação política. E histórica. 

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. (...)...também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”(1)

Não se trata de saber; o sobrevivente e os sobreviventes o sabem. Trata-se de responsabilizar, apoderar-se do sentido, desvelar o que está, ainda, nas trevas. Para que a tortura e a corrupção deixem de ser condição ordinária nos procedimentos investigatórios e no interior das penitenciárias. Para que a vida em sociedade faça sentido. Não é, como disse Lilian, para que nunca mais aconteça, exatamente; mas porque as repetições de tragédias e da barbárie nunca careceram de fiadores entusiasmados e eles seguem insistindo na transmissão e perpetuação do sofrimento. 

É para que aquilo que aconteceu faça sentido hoje, na nossa democracia, na nossa memória, no nosso cotidiano irrefletido. O paradoxo de dissolver a culpa e a responsabilidade no pântano das defesas delirantes “anti-revanchistas” se torna: ninguém tem culpa, porque todos são culpados, como lembrou Bernardo, no fim de seu depoimento. Os que tombaram na luta pela democracia só estarão seguros, enquanto mortos, se a democracia for uma experiência permitida. 

(1) Trechos da Tese VI, das Teses sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin. In: Aviso de Incêndio – Uma leitura das Teses “Sobre o Conceito de História”, Michel Löwy. Tradução das Teses: Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, São Paulo, SP, Boitempo Editorial, 2005.


Fotos: Eduardo Seidl 

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