quinta-feira, 1 de agosto de 2013

SUS: A Formação Médica no Brasil a partir da MP 621/2013

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Política| 24/07/2013 | Copyleft 

SUS: A Formação Médica no Brasil a partir da MP 621/2013

O segundo ciclo da MP 621/2013 não poderia estar mais confortável no sistema jurídico nacional. Ele se adapta à Constituição Federal e tem perfeita afinidade com o art. 43, da LDB. O acadêmico terá contato direto com os problemas e dificuldades do exercício da medicina e estabelecerá com a sociedade a necessária relação de reciprocidade. Por Márcio Mello Casado

Trabalho Forçado?
Muito se tem ouvido acerca da inclusão no curso de medicina de um período de treinamento na atenção básica à saúde, urgência e emergência no âmbito do SUS (art. 4º, II, da MP 621/2013), para aqueles que ingressarem nos cursos de medicina a partir de 1º de janeiro de 2015 (art. 4º, caput, da MP 612/2013).

O primeiro grito que se ouviu é de que seria inconstitucional a inclusão de tal segundo ciclo na grade curricular do curso de medicina, porque seria um trabalho forçado.

Com todo o respeito às opiniões dissonantes, mas esse argumento é dos mais pobres. A leitura ao art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal (É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer) já desmistifica essa ideia.

De acordo com a MP 621/2013, só atingirá a condição de médico aquele que passar por esse segundo ciclo. Pode-se até discordar política ou filosoficamente com a inclusão desse segundo ciclo de treinamento no SUS, mas o fato é que não serão médicos que estarão lá. Serão estudantes de medicina que devem alcançar o grau de qualificação necessário nesse período de treinamento para que possam se tornar médicos.

Ademais, a regra é para aqueles que ingressarem na medicina a partir de janeiro de 2015. Trata-se de grade curricular nova que será colocada à disposição do candidato. Ele pode ou não escolher a profissão de médico, levando em consideração o tempo e o conteúdo do curso. A escolha da carreira médica não é compulsória e nenhum serviço forçado será imposto ao acadêmico. Mas ele deverá, nos termos da Constituição Federal, atingir à qualificação profissional que a lei estabelecer para se tornar médico. E a lei vigente, hoje, determina que ele realize o segundo ciclo junto ao SUS.

Piso Vital Mínimo – Discriminação Positiva
O sistema constitucional brasileiro é antropocêntrico. A pessoa humana é o foco inicial do nascimento e desenvolvimento de direitos e obrigações no âmbito da interpretação e declaração de incidência das normas positivadas no sistema pátrio. O sistema educacional e a saúde tem como meta constitucional atender ao ser humano.

Ao ter como objetivo do Estado a garantia do desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, CF), com respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) a Constituição Federal revela o seu caráter antropocêntrico. O desenvolvimento nacional, em uma interpretação sistemática da Carta Maior, só pode ser atingido com a elevação do nível de vida dos cidadãos (prova disso é o art. 3.º, III), por meio da promoção do bem de todos ( art. 3.º, IV).

A aplicação do direito deve andar a par dos objetivos da República, até porque qualquer outra interpretação conduz à inconstitucionalidade do ato de concreção das normas aos fatos. O processo de interpretação deve ser, sem exceção, de cima para baixo, isto é, da Constituição Federal em direção à legislação ordinária, jamais o inverso.

A Constituição Federal, no art. 6º, estabelece um piso vital mínimo, qual seja:“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Educação e saúde estão inseridas em primeiro lugar no dispositivo. E isso não ocorre à toa. Trata-se de uma opção de hierarquia criada pelo constituinte. Não se constrói uma sociedade livre, justa e solidária, com foco na dignidade da pessoa humana, sem se atender, em primeiro lugar, a tais direitos fundamentais.

A Constituição Federal, no que concerne à saúde não é só antropocêntrica. Ela é DISCRIMINATÓRIA. Ela escolhe um lado. Ela se propõe a CUIDAR, DEFENDER, PROTEGER E INTERVIR em se tratando de questão que envolva a saúde.

É o que ocorre nos artigos:

- 23, II (É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência);

- 24, XII (Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII - previdência social, proteção e defesa da saúde);

- 34, III (A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde).

Pasmem os liberais de plantão (há duzentos anos), mas a Carta Constitucional do país é discriminatória. Ela confere privilégios a grupos especiais de pessoas (consumidor, art. 170, V, por exemplo) ou direitos (saúde) na medida em que busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Este fenômeno é denominado por Jorge Miranda de discriminação positiva, em que se estabelece uma vantagem fundada a alguém. Tratam-se de “desigualdades de direito em consequência de desigualdades de facto e tendentes à superação destas”

A Saúde na Constituição Federal
A partir do art. 196 há a seção destinada à saúde na Constituição Federal. E o primeiro dispositivo que lá se encontra é o seguinte: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A discriminação positiva lá está, de novo, no caput do artigo. O Estado deve promover medidas para melhorar a situação do país. É uma diretiva constitucional. É também o reconhecimento que o país tem muito a caminhar em se tratando de saúde. O texto constitucional reconhece que as coisas não estão – mas estavam piores em 1988 – boas e que merecem melhorias, tudo para adimplir à obrigação de construir uma sociedade livre, justa e solidária, focada na dignidade da pessoa humana.

O texto é bonito. Até mesmo poético. Mas tem o seu lado trágico. Trata-se da Lei Maior de um país dizendo que o Estado em que ela vige está bem longe de oferecer ao seu povo condições ideais de vida.

Mas há que se melhorar. A MP aqui em discussão não resolverá o problema da saúde. Mas é certo que ela encaminhará acadêmicos de medicina para atender quem mais precisa de saúde. E isso é um passo relevante. Isso é adimplir, ainda que em parte, o sistema DISCRIMINATÓRIO do direito à saúde no Brasil.

Os estudantes poderão até não gostar. Achar que já estavam prontos dois anos antes. Mas quem escolhe o conteúdo do curso não são eles. O Estado optou pelos pacientes do SUS, pelo direito à saúde. 
Vale lembrar que o treinamento do SUS também está previsto na Constituição Federal, no art. 200, III e V (Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico).

A Educação Universitária
A Constituição Federal, no art. 207, determina: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

O ensino, a pesquisa e a extensão são indissociáveis. Logo, o segundo ciclo previsto pela MP 621/2013 não contém nada de tão novo, estranho ou inconstitucional. Ao contrário, ele está contido em princípio constitucional, eis que é em parte ensino, pesquisa e extensão, desde 1988.

O plano nacional de educação, previsto no art. 214, deve conduzir à formação para o trabalho (inciso IV) e à promoção humanística do País. 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9394/1996), no capítulo destinado à educação superior, determina: “Art. 43. A educação superior tem por finalidade: I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.

Isto é, a educação superior, dentre outros objetivos, deve estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente e prestar serviços especializados à comunidade. O segundo ciclo do curso de medicina, no SUS, atende exatamente ao objetivo da Constituição Federal e está de pleno acordo com as diretrizes e bases da educação nacional.

Educar, participar e estabelecer com a sociedade uma relação de reciprocidade
O segundo ciclo da MP 621/2013 não poderia estar mais confortável no sistema jurídico nacional. Ele se adapta à Constituição Federal e tem perfeita afinidade com o art. 43, da LDB. O acadêmico terá contato direto com os problemas e dificuldades do exercício da medicina e estabelecerá com a sociedade a necessária relação de reciprocidade.

Do ponto de vista constitucional, político e social parece-nos inquestionável o valor positivo da medida provisória. 

A nós parece que a MP 621/2013 abre um debate bastante interessante sobre a grade curricular dos cursos superiores.

Talvez seja o momento de se examinar não só a importância do atendimento à saúde da população como um conteúdo do curso universitário. 

A relação de reciprocidade que o estudante universitário tem de estabelecer com a sociedade deve ocorrer em todas as áreas do conhecimento. Os acadêmicos de direito, engenharia, odontologia, para ficar em exemplos onde a reciprocidade social fica evidente, também poderiam ter as grades curriculares modificadas.

A educação não vem em primeiro lugar de forma aleatória no art. 6º, da Constituição Federal. Ela é o motor de uma sociedade. E o acadêmico que tem o mérito pessoal e o privilégio de usufruir da educação superior há que saber que ela deve ser útil não só a quem a recebe, mas à sociedade.

*Márcio Mello Casado, advogado, é mestre e doutor pela PUC/SP.

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