quinta-feira, 22 de maio de 2014

Uma ponte para o abismo entre o Brasil e seus indígenas

ihu
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Uma ponte para o abismo entre o Brasil e seus indígenas

Serão lançados nesta segunda-feira 19, em São Paulo, e na quarta-feira 21, no Rio de Janeiro, os dois livros que compõem o projeto Histórias da Tradição. Os livros são Ynyxiwè, que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá (80 páginas) e Aihö’ubuni wasu’u – o Lobo Guará e outras histórias do povo Xavante (96 páginas). Ambos possuem encarte de pôster colorido e CD. Realizado em parceria com lideranças dos povos Xavante e Karajás, o projeto, coordenado pela jornalista Ângela Pappiani, diretora da produtora Ikorẽ, apresenta mitos contados, em formas literárias, pelos indígenas. São belíssimas histórias que enriquecem a literatura nacional. Histórias dos contatos interétnicos, das resistências, e outras do perspectivismo indígena, nos quais animais interagem como humanos – como a história Xavante do urubu-rei que organiza um salvamento de um índio xavante.
A entrevista é de Felipe Milanez com Ângela Pappiani, publicada por CartaCapital, 19-05-2014.
Em um momento especialmente delicado na relação do governo brasileiro com os povos indígenas, com ataques noCongresso Nacional a direitos adquiridos, assassinatos (foram 15, ano passado, por conflito de terra), prisões arbitrárias (dezenas nesse ano, principalmente de lideranças TenharimKaingang e Tupinambá), racismos (um deputado ganhou o prêmio internacional de racista do ano), e diversas outras formas de desrespeito e violência, as duas obras são uma grande contribuição da criatividade indígena para um país cada vez mais mergulhado numa ideologia exploradora e destrutiva.
Os livros serão distribuídos para escolas indígenas das etnias Xavante e Karajá, bibliotecas públicas e Secretarias de Educação de Palmas e Cuiabá, Canarana e São Felix do Araguaia. Como autores, os índios são detentores dos direitos autorais das obras e, por isso, seu recolhimento será automaticamente destinado às comunidades.
Eis a entrevista.
Como surgiu a ideia do livro?
O que nos motivou a elaborar e realizar o projeto Histórias da Tradição é a consciência do grande abismo que separa o Brasil dos povos originários deste país. O total desconhecimento e desrespeito pelas culturas tradicionais nos leva ao desencontro, a um afastamento cada vez maior desses povos que são contemporâneos do Brasil. A consequência desse desencontro são os conflitos e a violência. Do outro lado do abismo, os povos indígenas teimam em sobreviver e manter suas culturas mesmo enfrentando o avanço cada vez mais truculento sobre seus territórios e saberes. As cidades e fazendas invadem as áreas indígenas, a televisão, as missões religiosas e a escola chegam dentro das aldeias difundindo valores, conceitos e necessidades que nada têm a ver com o modo tradicional de vida, impondo modelos que afastam os mais jovens do conhecimento tradicional, de sua identidade. Felizmente, em muitas aldeias, lideranças conscientes enxergam essas armadilhas e buscam ferramentas para fortalecer a cultura e encontrar caminhos de convivência com os novos tempos.
O povo Xavante da Terra Indígena Pimentel Barbosa tem estratégias de relação com a sociedade nacional desde os primeiros contatos, no final da década de 40. Foram muitos os trabalhos realizados por esse povo para se relacionarem com os warazu (os estrangeiros) mantendo seu território e cultura. Somos parceiros desde a década de 1980 em muitas realizações de fortalecimento cultural e aproximação com a sociedade brasileira, como por exemplo o livro Wamrémê Za’ra - Nossa palavra/ Mito e história do povo Xavante (Ed. Senac/98), o CD Etenhiritipá – cantos da tradição Xavante, os documentários A’uwê Uptabi – o povo verdadeiro e Estratégia Xavante, o projeto Rito de Passagem, a parceria com a banda Sepultura (Roots), com o músico Ramiro Musotto. Nesses trabalhos, o objetivo era criar a ponte com o Brasil ao mesmo tempo em que valorizavam sua identidade e fortaleciam sua cultura internamente.
Com o projeto Histórias da Tradição estamos retomando esse caminho, envolvendo a nova geração num trabalho de valorização das histórias tradicionais, protegidas na memória dos mais velhos. Porque é nessa memória, nesse mundo fantástico das narrativas, onde os tempos e os espaços se misturam, que resiste a possibilidade de permanecerem como o “povo verdadeiro”. Com o povo Karajá a trajetória também tem mais de uma década. Fizemos um trabalho de registro e valorização dos cantos e das cerimônias tradicionais editados no CD Iny – cantos da tradição Karajá e apresentados dentro do projeto Rito de Passagem. Mas o povo Karajá hoje enfrenta um grande desafio que é a entrada cada vez mais violenta das drogas dentro das comunidades, com o aumento do suicídio entre os jovens.
Acreditamos que ações de valorização dos conhecimentos e tradições, principalmente das narrativas ancestrais que trazem para o presente o tempo da criação, que envolvam as várias gerações dentro das aldeias, e seu registro e divulgação para um público mais amplo, possam fortalecer as comunidades, revelando a riqueza e singularidade dessas culturas para dentro e para fora das aldeias. Como diz um velho sábio do povo Xavante: “Ninguém respeita aquilo que não conhece”. Os povos indígenas precisam de canais de comunicação com o povo brasileiro, precisam de espaços onde possam revelar seus conhecimentos, a beleza e força de suas culturas. A diversidade é nossa maior riqueza e deveria ser um bem assumido pelo Brasil, protegido e valorizado dentro e fora de nossas fronteiras. Infelizmente o Brasil tem vergonha de suas origens “tupiniquins”. Toda referência ao povo indígena é sempre com termos pejorativos e discriminatórios. Temos um longo caminho pela frente e muito trabalho a ser realizado para que as mais de 250 etnias que convivem com o Brasil contemporâneo possam se mostrar em sua diversidade e riqueza.
As histórias coletadas e registradas pelo projeto Histórias da Tradição são uma pequena contribuição para a compreensão desse Brasil pluriétnico.
Como foi o processo de escrita dos mitos?
O tempo de realização do projeto foi muito curto. Somente com os muitos anos de relação e amizade com esses povos e com os trabalhos realizados anteriormente foi possível o mergulho nessas culturas que possibilitou a compreensão das narrativas e a sua transposição para o idioma português. Como a intenção principal do projeto é a valorização das narrativas e do papel dos velhos, a formação de um acervo em áudio e vídeo era o nosso foco. E também a projeção futura desse trabalho, para que ele não se encerre agora, com o final do projeto patrocinado pela Petrobras. Assim, o primeiro passo do processo envolveu a capacitação de equipes de jovens e professores das duas aldeias para a documentação das narrativas tradicionais em áudio, o trabalho cuidadoso com a tradução e a garantia da participação dos anciãos – os narradores tradicionais detentores do conhecimento compartilhando as histórias.
Professores e alunos das escolas indígenas também se envolveram no trabalho de ilustração das histórias. Mais de 60 pessoas indígenas estiveram envolvidas diretamente em todas as etapas do processo. As comunidades apontaram os melhores narradores, eles próprios escolheram as histórias que queriam contar. Na aldeia Xavante a maioria das narrativas foi gravada à noite com presença das mulheres mais velhas e até dos meninos reclusos no .
Foram mais de 50 histórias registradas em áudio, cerca de 15 Xavante e 35 Karajá. As comunidades escolheram as mais representativas, as que melhor revelam os fundamentos dessas tradições. As seis histórias escolhidas pelo povoXavante e seis pelo povo Karajá foram então traduzidas com todo o cuidado para que as versões em português preservassem o estilo do narrador, o ritmo e a essência das histórias. Foram dias de trabalho com os coordenadores do projeto Daniel Coxini e Paulo Supretaprã acompanhados dos professores e outros tradutores. Nos Xavante o trabalho ficou concentrado entre o Paulo e o Vinícius. Nos Karajá tivemos 4 tradutores.
O trabalho realizado nas aldeias, acompanhando palavra a palavra, a partir das gravações do velhos, foi o mais produtivo e criativo. Os tradutores perceberam a dificuldade e a profundidade do seu trabalho.
Depois, em São Paulo, a partir dos textos brutos traduzidos, eu trabalhei o texto final, procurando preservar o estilo dos narradores, o clima da história, o contexto cultural. Foram várias versões de cada texto até chegarmos ao final, todos apresentados às comunidades e discutidos até chegarmos a um consenso. Foi desafiador! Uma verdadeira gestação das histórias até que estivessem prontas para o nascimento. E também muitos sonhos! Os ancestrais estiveram presentes!
No site do projeto tem uma página Diário da Aldeia, com fotos e comentários sobre o processo.
A FLIP esse ano vai ter duas mesas com tema relacionados a literatura e povos indígenas. Como analisa esse interesse atual pela literatura indígena?
Já era hora do Brasil enxergar que existe uma literatura riquíssima, mesmo que ainda esteja, em sua maior parte, no domínio da oralidade, dentro de cada comunidade indígena, com toda riqueza e diversidade dessas centenas de culturas.
Tenho acompanhado essa abertura do mercado para a literatura indígena e acredito que ainda há um longo caminho pela frente. O interesse comercial imediatista das editoras tem focado em “historinhas para crianças”, muitas vezes editadas sem cuidado e profundidade. Vejo poucas iniciativas como a do projeto Histórias da Tradição ou a do Bruce Alberttrazendo o pensamento do povo Yanomami com toda sua força e beleza para o conhecimento de um grande público. Esse trabalho envolve envolvimento pessoal, paixão e muito tempo...Vai na contramão do mercado.
Felizmente tivemos o apoio do patrocínio da Petrobras que garantiu as viagens e o acompanhamento direto das comunidades. Queremos dar continuidade ao projeto trazendo a literatura de outros povos com quem trabalhamos há muito tempo como os KaxinawáKrenakTukano... e publicando mais livros com as narrativas dos Karajá e Xavante já coletadas. Espero que a visibilidade que a FLIP promove, contribua para essa discussão sobre a literatura dos povos originários de nosso país.

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