sábado, 7 de março de 2015

A bancada evangélica, Direitos Humanos e 'fé e política'

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A bancada evangélica, Direitos Humanos e 'fé e política'

Jung Mo Sung
Adital
A bancada evangélica da Câmara Federal entrou na disputa, com o PT, pela presidência da Comissão dos Direitos Humanos; a mesma comissão que já foi palco de muita polêmica com a presidência do deputado evangélico Marco Feliciano. Não vou discutir aqui as questões regimentais sobre se a candidatura avulsa do deputado Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ), pastor da Assembleia de Deus e apadrinhado do pastor Silas Malafaia, quebra ou não o acordo dos blocos partidários ou alguma norma do regimento interno da Câmara. O tema que quero levantar é o da relação "fé/religião e política”.
No artigo anterior, eu tratei da importância da noção de "missão divina” na violência "sem limite” do Estado Islâmico. Sem essa noção religiosa, não é possível entender a agressividade e a determinação do EI, mas também o seu projeto político da construção de um califado teocrático. É em nome da sua fé e da sua visão do mundo baseada na sua religião que dirigentes e militantes do EI estão em uma guerra santa; assim como é em nome da fé e da religião que a bancada evangélica disputa o poder na Câmara e na Comissão dos Direitos Humanos. É claro que há outros fatores em jogo, mas não se pode minimizar o papel da religião.
O tema da "fé e política” não é algo novo no Brasil. Em termos históricos mais recentes, foram as CEBs e as pastorais sociais católicas que, a partir da década de 1970, impulsionaram a militância política em nome da fé. A participação dos cristãos em nome da fé foi bem vista pela esquerda não cristã porque eram aliados na luta contra a ditadura e a exploração capitalista; porém foi criticada, não somente por setores conservadores das igrejas e da sociedade, mas também por setores progressistas liberais modernos em nome da separação entre a religião (reduzida a esfera privada) e a esfera pública. "Fé e política” era vista por esses como um retrocesso a uma cultura pré-moderna.
Em nome do "Deus libertador”, muitas pessoas e comunidades eclesiais (em geral católicas, mas também protestantes históricos e evangélicos) entraram, e muitos ainda estão, nas lutas sociais e políticas; ajudaram organizar movimentos populares e também partidos, especialmente o PT e os seus núcleos de base (que ficou na memória dos antigos militantes). Seguindo este caminho, setores social e politicamente mais conservadores das igrejas evangélicas entraram na política em nome da sua fé e religião: hoje elegem deputados pastores ou líderes "leigos” e até controlam partidos. E nas instituições do Estado defendem os valores sociais e morais que acreditam ser de acordo com a sua fé e missão.
Essas três correntes constituem um pequeno exemplo do "pluralismo religioso” do nosso tempo. Não somente por serem de religiões ou denominações diversas, mas, mais importante, por terem visões muito distintas de Deus e/ou missão divina ou religiosa no mundo. Em nome de Deus, alguns degolam os inimigos da fé e querem impor teocracia, outros são radicalmente contra casamento de pessoas do mesmo sexo ou o aborto e defendem o sistema de mercado livre, e há também aqueles que defendem os direitos da comunidade LGBT e a superação do capitalismo... Temos diante de nós uma imensa pluralidade religiosa.
Diante de situações concretas – como da Comissão dos DH ou a guerra no Oriente Médio –, o discurso abstrato do respeito a priori da religião do outro não é suficiente, nem realista. Nos conflitos que nos afetam, tomamos posições. É possível nos manter respeitoso para com grupos que em nome da sua fé degola um inocente? Ou que legitimam, em nome dos seus valores religiosos, a submissão total das mulheres e a demonização dos homossexuais?
Também não é suficiente dizer que devemos substituir as religiões por espiritualidades. Porque também há espiritualidades que nos levam à indiferença para com pessoas que sofrem, que se afastam, se alienam dos conflitos sociais ou que movem as forças da injustiça e opressão. Não devemos esquecer do Espírito/espiritualidade do Capitalismo.
A proposta de reduzir a fé à esfera da vida privada não é viável, porque a própria separação da vida privada e pública – uma invenção da modernidade -- não é absoluta e a fé, quando realmente vivida, não se deixa reduzir a essa pequena parte da vida. Uma quarta opção, o caminho de usar a minha/nossa noção de Deus e da "missão divina” para julgar os conflitos e legitimar uma determinada posição nos levaria a um domínio de uma visão religiosa do mundo sobre as outras.
Penso que não devemos abdicar da relação "fé/religião e política”, mas precisamos repensar seriamente essa relação. E neste processo, devemos entender que a bancada evangélica na Comissão dos DH é movida por uma compreensão religiosa do mundo, por seus valores morais e sua fé. Podemos discordar da posição deles, mas devemos entender que por detrás da atuação deles está a relação "fé e política”. Este caso é uma pequena ponta de iceberg de um problema muito importante que está por detrás de muitos conflitos militares, políticos, sociais e econômicos no mundo de hoje.
Não há uma solução fácil. Precisamos encontrar um critério ético "universal” que esteja acima da doutrina concreta das religiões e da diversidade ideológica e das filosofias sociais e que seja capaz de defender os direitos humanos de todas as pessoas.
(Jung Mo Sung é autor junto com J. Rieger e N. Miguez, do "Para além do Espírito do Império”, Paulinas.)

Jung Mo Sung

Graduado em Filosofia (1984) e em Teologia (1984) doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (1993) e pós-doutorado em Educação pela Univ. Metodista de Piracicaba (2000). Atualmente é professor titular da Universidade Metodista de São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Autor, com H. Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus. Twitter: @jungmosung

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